• Domingo, 17 de agosto de 2025

Bolívia: eleições podem representar fim de hegemonia da esquerda

Os bolivianos vão às urnas neste domingo (17/8) para escolher o presidente, o vice-presidente, além de senadores e deputados

Os bolivianos vão às urnas neste domingo (17/8) para escolher o presidente, o vice-presidente, além de senadores e deputados para o próximo mandato de cinco anos. Após quase 20 anos de hegemonia do partido de Evo Morales, o Movimento ao Socialismo (MAS), a Bolívia está prestes a iniciar um novo ciclo político e econômico mais liberal. “Nestas eleições, o país decidirá se quer continuar no caminho da autocracia ou se retomará o caminho da democracia. A maioria parece optar por uma via democrática, após anos de um governo que concentrou todos os poderes do Estado, inclusive o eleitoral, enfraquecendo o Estado de Direito, o respeito à Constituição, à liberdade de expressão e à liberdade de imprensa”, explicou à RFI o economista e analista político boliviano Carlos Toranzo. Leia também “Estamos diante de uma possível mudança de ciclo político e econômico, passando de um autoritarismo estatal para um liberalismo democrático. Espero que a direita ou a centro-direita que vencer as eleições represente um modelo democrático liberal e não resulte em um ciclo conservador e autoritário”, acrescenta o analista político Raúl Peñaranda. Pela primeira vez, o país deve ter um segundo turno, previsto para 19 de outubro. No entanto, ao contrário da tendência regional, a disputa não incluirá os extremos políticos: a direita enfrentará a centro-direita tradicional e democrática, sem participação da extrema direita. Independentemente de quem vencer, as medidas econômicas deverão revitalizar uma economia marcada por inflação elevada e escassez de produtos básicos. É justamente essa urgência em resolver a crise econômica que leva a maioria da população a se dividir entre duas opções de perfil liberal, em uma escolha muito mais pragmática do que ideológica. “Do ponto de vista das ciências econômica e política, virão mudanças muito profundas. Do ponto de vista dos cidadãos, o que se percebe é um clima de esperança”, resume Toranzo. A esquerda deve sair desta disputa enfraquecida, a ponto de o MAS, vitorioso em 2005, correr o risco de desaparecer, tamanha a perda de apoio. Algumas pesquisas não lhe atribuem nem os 3% necessários para continuar registrado como partido político. Disputa acirrada A disputa está acirrada entre o ex-presidente Jorge Quiroga (2001–2002), conhecido como “Tuto”, e o empresário Samuel Doria Medina. Tuto Quiroga, de 65 anos, representa a direita pela Aliança Libre. Doria Medina, de 66 anos, tem origem na social-democracia e representa a centro-direita pela Aliança Unidade Nacional. Segundo as últimas pesquisas, a disputa está concentrada entre esses dois candidatos. Nove sondagens apontam uma ligeira vantagem para o empresário Samuel Doria Medina. Uma delas indica vitória de Tuto Quiroga. Em todos os casos, trata-se de um empate técnico, com diferença inferior à margem de erro. A empresa brasileira AtlasIntel divulgou, na manhã desta sexta-feira (15), fora da Bolívia, a 11ª e mais recente pesquisa. No levantamento, Jorge “Tuto” Quiroga aparece com 22,3% das intenções de voto, enquanto Samuel Doria Medina tem 18%,a maior diferença registrada entre os dois até agora. Os votos brancos e nulos somam 14,6%, e os indecisos, 8,4%. Segundo analistas, os pesquisadores enfrentam dificuldades para medir o voto rural indígena, que pode favorecer o candidato Andrónico Rodríguez, de 36 anos, representante da esquerda pela Aliança Popular. Presidente do Senado, Andrónico Rodríguez é visto como o sucessor político de Evo Morales, embora os dois estejam afastados, a ponto de Rodríguez não poder usar a sigla MAS. Historicamente, as pesquisas eleitorais na Bolívia costumam apresentar margens de erro elevadas. Outro fator que pode influenciar o resultado é o número de eleitores indecisos. Nos últimos anos, esse grupo tendia a votar mais à esquerda, influenciado pelo período de crescimento econômico. Agora, porém, o cenário é de escassez. “No passado, o voto indeciso pendia para o MAS, mas agora, em meio à crise econômica provocada pelo próprio MAS, esses votos migram para a oposição, como consequência do desgaste natural de quem é responsabilizado pela situação do país”, analisa Toranzo. “Mesmo que exista um voto oculto em favor de Andrónico Rodríguez entre os indecisos, ele seria derrotado em um eventual segundo turno, seja por Tuto, seja por Samuel. É o que indicam todos os modelos de simulação para o segundo turno”, afirma Peñaranda. Morales está inelegível O ex-presidente Evo Morales (2006-2019) está inelegível por decisão do Tribunal Constitucional, por já ter exercido três mandatos consecutivos, de 2006 a 2019. Morales também enfrenta uma ordem de prisão por estupro de uma menor e por tráfico de menores, acusações que ele nega. Ainda assim, refugiado na região do Chapare, Evo Morales incentiva o voto nulo. Ele afirma que, se o voto nulo vencer, isso significará que ele venceu as eleições. “Evo Morales tinha tudo para ser lembrado como um líder e terminar com uma estátua em sua homenagem, mas, em vez disso, está associado a acusações de estupro, pedofilia e tráfico de menores”, diz. “Como todo líder autoritário, não aceita sucessores políticos. Promove o voto nulo, mas, quando começou a pedir que anulassem o voto, as pesquisas já indicavam que o voto nulo estava em torno de 10%. Morales pode tentar se apropriar desse voto, mas ele não é todo dele”, afirma Carlos Toranzo. “Mesmo que consiga 20% de votos nulos, essa estratégia acabará sendo apenas uma curiosidade, já que os votos nulos não têm valor jurídico nem político”, minimiza Raúl Peñaranda. Na Bolívia, no primeiro turno, um candidato vence as eleições se obtiver mais de 50% dos votos válidos, como no Brasil. No entanto, há uma diferença: também é possível vencer com mais de 40% dos votos válidos, desde que haja uma vantagem de pelo menos 10 pontos percentuais sobre o segundo colocado. O atual presidente, Luis Arce, não concorre à reeleição devido à baixa popularidade, resultado da pior crise econômica dos últimos 40 anos. Desaceleração econômica A Bolívia enfrenta uma grave crise econômica. O país sofre com a escassez de dólares, causada pela queda nos investimentos estrangeiros diretos e pela redução das exportações, especialmente de gás natural. As reservas internacionais do Banco Central estão em níveis baixos, US$ 2,8 bilhões, comparados aos US$ 15 bilhões registrados em 2014, devido à diminuição das reservas de gás, que não têm sido renovadas por novas explorações. Além disso, os dois principais compradores, Brasil e Argentina, reduziram significativamente suas aquisições. Outro agravante é o câmbio fixo: o valor do dólar em relação ao boliviano está congelado desde 2008. A manutenção artificial da taxa de 6,96 bolivianos por dólar durante 17 anos fez com que a moeda norte-americana passasse a valer o dobro no mercado paralelo. Com uma economia pouco diversificada, que depende da importação de alimentos e medicamentos, o país passou a conviver com a escassez de produtos básicos e com preços em alta. A balança de transações correntes está negativa. Os combustíveis são importados e vendidos com subsídios, abaixo do custo de aquisição, como parte de uma política populista. O cenário é preocupante: os subsídios para alimentos e combustíveis representam 4,2% do Produto Interno Bruto (PIB), o déficit fiscal chega a 13% do PIB, e a dívida pública, interna e externa, equivale a 110% do PIB. A inflação acumulada nos últimos 12 meses atingiu 24,8% e tende a crescer ainda mais, à medida que as tarifas de serviços públicos e os preços dos combustíveis forem ajustados aos valores de mercado pelo próximo governo. Em outras palavras, para alcançar a estabilidade, a população ainda enfrentará mais dificuldades. A nova classe média, formada após a redução da pobreza de 60% para 36%, em grande parte voltou à condição de pobreza. “É provável que a instabilidade nos primeiros meses gere protestos. Esse será um desafio para o novo governo. Os candidatos já anunciaram que pretendem reduzir, parcial ou totalmente, os subsídios. Serão meses intensos até que se possa enxergar um horizonte de médio prazo”, prevê Peñaranda. “Mas as pesquisas de opinião mostram que 70% da população está disposta a aceitar um ajuste, desde que haja garantias sobre o futuro. Além disso, muitos preços já estão sendo corrigidos com base no dólar paralelo”, pondera Toranzo. Desafio da governabilidade A governabilidade é outro grande desafio para o próximo governo. A Bolívia elegerá 36 senadores e 130 deputados. A esquerda deve conquistar apenas uma minoria, enquanto a maioria tende a ser formada por representantes da direita e da centro-direita. De qualquer forma, quem vencer precisará construir alianças. “Não vejo uma dispersão de votos. Vejo, sim, uma concentração no Congresso entre quatro forças políticas. Será um Parlamento que exigirá diálogo, bem diferente do modelo de imposição que marcou o ciclo que está se encerrando”, avalia Toranzo. Mesmo que o Congresso fique fragmentado, ele deve ser dominado por partidos com objetivos semelhantes, o que pode facilitar negociações e acordos. “Nenhum partido terá maioria sozinho, mas tudo indica que Tuto e Samuel vão governar juntos, porque têm ideologias próximas, já foram aliados no passado e suas equipes se conhecem e se respeitam. Estamos diante de um caso raro: um segundo turno entre duas forças que provavelmente formarão uma aliança depois. Agora, vão disputar votos como adversários. Espero que consigam”, comenta Peñaranda. 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Por: Metrópoles

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