José Sarney tomou posse como presidente da República há exatos 40 anos, em 15 de março de 1985. Era uma 6ª feira. Ele tinha 54 anos. Hoje, está com 94. Sua chegada ao Planalto foi o epítome do processo de redemocratização e do fim do regime militar, que havia durado 21 anos.
Hoje, neste sábado (15.mar.2025), o Brasil completa 40 anos ininterruptos de democracia. É um recorde de estabilidade institucional na história dos 525 anos do país.
Na manhã da última 4ª feira (12.mar.2025), Sarney recebeu o Poder360 para uma entrevista em sua casa de estilo colonial em Brasília. Fazia sol. Ele acabara de fazer sua fisioterapia diária, para reforçar os músculos. Vestia um terno azul-marinho, camisa social branca e gravata estampada com tons de azul e amarelo. Não tinge mais de preto os cabelos nem o bigode, hábito que manteve durante muitos anos quando ocupava cargos públicos.
Ainda não se vê nenhum item marrom no vestuário de Sarney. Ele é supersticioso. Nunca usa essa cor. “Que las hay, las hay”, brinca. É uma citação ao conhecido aforismo espanhol “yo no creo en las brujas, pero que las hay, las hay” (eu não credito em bruxas, mas que elas existem, existem).
“Na minha idade, o importante é ter força nas pernas”, disse ao entrar na sala onde seria iniciada a conversa. Na varanda ao lado, sobre uma mesa, repousava um exemplar do livro “Nexus” (2024), do professor israelense de história Yuval Harari, já com mais da metade das 504 páginas lidas e anotadas. Sarney sublinha o que considera mais interessante com caneta esferográfica de tinta preta.
“É muito interessante o conceito que ele [Harari] sintetiza sobre informação não ser sinônimo de verdade”, diz o ex-presidente, que vai completar 95 anos em 24 de abril. Com o raciocínio afiado, demonstrou estar também bem-disposto fisicamente ao final da entrevista, quando passeou um pouco pelos jardins de sua casa com a equipe deste jornal digital. Já era quase meio-dia. O calor havia aumentado. Sarney parecia não se importar. Atendeu aos pedidos do repórter fotográfico Sérgio Lima para se posicionar num local arborizado e assim ter sua imagem registrada.
No início da entrevista gravada em vídeo, definiu o que é democracia: “O coração da democracia é a liberdade. Essa é a definição mais precisa de democracia: liberdade. A liberdade tem um poder criativo que se derrama sobre a sociedade”.
A tolerância é uma das marcas de José Ribamar Ferreira de Araújo Costa, o nome de batismo de Sarney (que adotou o prenome do pai como sobrenome já na vida adulta). Nos 5 anos em que esteve no Planalto, foi um dos presidentes mais criticados pela mídia e por políticos de esquerda e de direita. Aguentou firme. “Nunca processei nenhum jornalista nem nenhum jornal. Eu achava que essa liberdade dada é como a da 1ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, que nós seguimos como democracia. Tive muitos críticos ferinos. Acredito que a democracia e a liberdade de imprensa têm um poder tão grande que no futuro pode corrigir tudo o que foi dito”.
Não guardou mágoa de ninguém? “Eu nasci com a absoluta impossibilidade de ter ódio […]. Eu não tenho inimigos. Eu sempre tive adversários. Eu acho que essa é uma coisa nova na política brasileira que nós devemos superar e abandonar. A política feita para ter adversário, não para ter inimigos”.
Sarney assumiu seu 1º cargo público em 1955, como deputado federal pelo Maranhão. Ele nasceu na cidade de Pinheiro, que fica no norte do Estado e a 333 km de São Luís, a capital maranhense. A carreira de Sarney é longeva. Ele foi governador do Maranhão (1966-1970), senador pelo Maranhão (1971-1985) e senador pelo Amapá (1991-2015). Presidiu o Senado por 3 mandatos: 1995-1997, 2003-2005 e 2009-2013.
Casado com Marly desde 1952, tem 3 filhos: Roseana, 71 anos; Fernando, 69 anos, e José Sarney Filho, o Zequinha Sarney, de 67 anos.
Escreveu e publicou 123 livros. É membro da Academia Brasileira de Letras. Deixou a política eleitoral ao terminar seu último mandato de senador, pouco antes de completar 86 anos, em 2015. Mas não parou de ser procurado por muitos políticos, que desejam ouvir suas análises e conselhos. Em 10 de março de 2025, passou cerca de 3 horas no Palácio do Planalto na cerimônia das posses dos ministros Alexandre Padilha (Saúde) e Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais). Foi abraçado e tietado por várias autoridades, inclusive pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) –um crítico do passado e hoje um amigo.
Observador da vida nacional, Sarney aponta alguns líderes na política atual: o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), e os governadores do Pará, Helder Barbalho (MDB), de Goiás, Ronaldo Caiado (União Brasil), e o de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos) –este último, “um excelente quadro”.
Leitor voraz, elogia Itamar Vieira Junior, de quem leu o livro “Torto Arado” (de 2019). Lamenta não haver jornais impressos em papel. Vira-se lendo tudo num iPad, o tablet da marca Apple. Pretende finalizar agora em 2025 seu 124º livro, “O Brasil e seu labirinto”. Escreve à noite, em geral depois das 22h. Usa um computador Dell e o processador de textos Word, da Microsoft. Dorme cerca de 6 horas por noite. Qual o segredo para chegar bem aos 95 anos? Sarney responde sorrindo: “Dormir muito, comer pouco e não discutir com mulher”.
Em 2026, o ex-presidente opina que o seu partido, o MDB, deveria manter o apoio a Lula. “Ele [Lula] ainda é o maior líder popular que tem no país. Tem experiência”.
Assista à entrevista de José Sarney ao Poder360 (12.mar.2025):
A seguir, trechos editados da entrevista de Sarney ao Poder360:
Poder360 – O que é a democracia?
José Sarney – O coração da democracia é a liberdade. Essa é a definição mais precisa de democracia: liberdade. A liberdade tem um poder criativo que se derrama sobre a sociedade.
Alguém já disse que a democracia é a troca do grupo que está no poder de vez em quando. Essa é também é uma boa definição?
É boa, mas é uma definição secundária. A democracia é de fato um regime no qual pode haver substituição. Há alternância no poder. Mas essa é uma explicação do mecanismo, de como se exerce a democracia.
O atual período democrático começou há 40 anos, em 15 de março de 1985, com a sua posse como presidente da República. O então presidente eleito, Tancredo Neves, teve de ser internado por causa de uma diverticulite. Como foi a tensão daquelas horas que antecederam sua posse?
Eu fui tomado de absoluta perplexidade. Eu não havia me preparado para ser presidente da República. Nem Tancredo tinha me convidado para participar da formulação do seu programa de governo, da escolha dos seus ministros.
Eu sou um homem de fé. Eu acreditava que o Tancredo jamais morreria.
Eu sabia, pela minha experiência da vida pública, o que era governar o Brasil. Um país complexo e com grandes problemas. E nós estávamos com um outro problema muito maior: a transição do poder autoritário para um poder democrático. Saíamos de um regime militar, autoritário e de poder absoluto, para um regime de absoluta liberdade.
O sr. assumiu como presidente interino. Só depois, com a morte de Tancredo em 21 de abril de 1985, passou a ser presidente de maneira definitiva. Além de assumir o poder de forma inesperada, era um interino nas primeiras semanas…
Quando o presidente morreu, aí tomei aquela consciência das minhas responsabilidades. Eu usava a expressão “estou com os olhos de ontem”.
Quais foram as personagens relevantes ao seu lado naquele período de transição, na sua posse como interino e depois em definitivo?
Em 1º lugar, Ulysses Guimarães [1916-1992] [então deputado federal e presidente da Câmara]. Eu disse a Ulysses que não queria assumir. Causaria uma certa perplexidade ao povo brasileiro: em vez de Tancredo, eu assumindo a Presidência da República. Eu havia sido presidente do PDS, da Arena [as siglas que deram sustentação ao regime militar].
Em 2º lugar, foi importante naquele momento o dr. Leitão de Abreu [1913-1992, ministro da Casa Civil do governo do presidente João Figueiredo]. E também o general Leônidas Pires Gonçalves [1921-2015] [que havia sido escolhido por Tancredo para ser ministro do Exército].
Houve uma comissão de pessoas que se reuniu para decidir o que fazer em 14 de março de 1985, pois Tancredo não teria como tomar posse no dia seguinte. Faziam parte dessa comissão Ulysses, Leitão de Abreu, Leônidas, Fernando Henrique Cardoso, Pedro Simon e Heráclito Fortes, entre outros. Eles se reuniram no Hospital de Base, em Brasília, onde estava internado Tancredo. Falávamos no corredor.
Eu fui engolido pelo cansaço. Começaram a discutir quem devia assumir. Eu disse: “Olha, eu tenho a minha posição expressada ao dr. Ulysses. Eu não quero assumir. Vocês estão discutindo aqui, no hospital. Eu vou para minha casa”.
Leônidas sustentou que quem deveria tomar posse era eu.
Leitão de Abreu, nessas conversas, tinha de defender a posição de Figueiredo, que não desejava a minha posse, dizendo que Ulysses deveria ocupar o Planalto.
O ministro do Exército de Figueiredo era o general Walter Pires [1915-1990]. Ele estava disposto a cumprir a determinação de Figueiredo. Ao saber que a comissão havia decidido que quem assumiria seria eu, Walter Pires disse ao Leitão de Abreu: “O presidente não aceita. Vou para os quartéis agora e vamos impedir essa posse”. Aí Leitão de Abreu respondeu: “Você não é mais ministro. O ‘Diário Oficial’ de hoje publica sua demissão” [já era madrugada de 15 de março de 1985].
Em que horário chegou a informação de que o sr. iria assumir a Presidência?
Às 3h da madrugada.
E quem comunicou?
Leônidas Pires Gonçalves, que seria o ministro do Exército, escolhido por Tancredo. Eu disse a ele o que já havia dito quando eu também havia estado no hospital: “Leônidas, você conhece a minha posição. Eu só quero assumir com o Tancredo”. Ele respondeu: “Sarney, vocês levaram muitos anos para que isso acontecesse [a transição do regime militar para a democracia]. Então você não pode criar mais nenhum caso. Vamos deixar de sentimentalismos”. Essa era a mesma expressão usada por Ulysses antes quando eu dissera a ele que não deveria assumir. Nessa conversa com Leônidas, já na madrugada do dia 15, ele concluiu assim: “Às 8h da manhã vão buscá-lo para cumprir tudo o que está no cerimonial. Boa noite, presidente”. E bateu o telefone. Foi a partir daquele momento que eu passei a saber que a decisão estava tomada.
A ditadura militar, na sua opinião, foi derrubada ou acabou caindo sozinha por ter fracassado?
Ela foi substituída por um processo de engenharia política que orgulha muito os políticos brasileiros.
Na independência, tivemos também um processo negociado. Pegamos um príncipe estrangeiro [d. Pedro 1º], transformamos em brasileiro. Não tivemos luta, como na América espanhola, cujas independências foram feitas de batalha.
Nós atravessamos isso na República da mesma maneira. Não tivemos nenhuma luta sangrenta. Na Revolução de 1930, prepararam-se para ter grandes embates. Não teve nenhum. Saímos também com uma posição negociada na renúncia de Jânio Quadros [1917-1992], em 1961. A mesma coisa na posse de Jango Goulart [1919-1976].
Os políticos brasileiros construíram tudo isso ao longo do tempo. E Ulysses teve grande importância nesse processo, com o PMDB. E nós nos juntamos a ele com o nosso grupo que, embora tivesse apoiado o regime de 1964, teve como objetivo não deixar fechar o Congresso.
A característica brasileira de não violência é em geral elogiada. Mas há quem diga que dessa forma, sem rupturas abruptas, o país enfrenta processos mais longos e demorados de transição. Isso é bom ou ruim?
O Brasil foi uma construção civil. Não foi uma construção militar como as outras independências.
O José Bonifácio [1763-1838], que vinha da Europa, conduziu um processo em que o imperador convocou uma Constituinte. Era uma maneira de mostrar que aquilo vinha dos civis, para fazer uma monarquia constitucional.
Essa atitude conciliatória torna o Brasil mais lento na evolução das suas instituições em comparação com países que tiveram revoluções sangrentas?
O sangue sempre foi uma maneira de dividir as sociedades e marcá-las durante muito tempo. Veja nos Estados Unidos: até hoje o problema dos pretos remanesce. É um grande problema com o qual eles têm de lidar. É uma hipoteca da independência.
Na América do Sul, o brasilianista chamado Ronald Schneider diz que a transição brasileira para a democracia foi a mais exitosa de todas. Não deixou hipotecas militares.
Ainda assim, apesar do processo de anistia de 1979, hoje o Supremo Tribunal Federal discute se deve reavaliar certos fatos que não deveriam ter sido incluídos nesse processo de perdão.
Quem dirigiu esse processo da anistia foi o Petrônio Portela [1925-1980]. Ele fez a negociação que possibilitou a transição democrática. O que foi a anistia? Foi para os 2 lados. Sem isso nós não teríamos a transição democrática.
Os militares jamais aceitariam. Tinham armas na mão. Não aceitariam que fossem punidos depois.
Isso possibilitou que fizéssemos a transição democrática e comemorarmos agora os 40 anos de democracia no Brasil.
Acredito que se o Supremo encontrar, de maneira legal, sem mexer no acordo da anistia, é a Justiça que examina se deve punir ou não de acordo com as leis que nós temos atualmente.
Temos de fazer leis atuais. Punir aqueles que atualmente tenham feito [cometido delitos], e não como coisas do passado.
O STF analisa atualmente um caso do passado, de Rubens Paiva, que foi deputado. A ideia é avaliar se devem ser punidos aqueles que mataram e ocultaram o cadáver de Rubens Paiva.
A anistia para os criminosos de sangue não foi feita. Nós conseguimos, naquela época, que isso fosse excluído. Isso já foi. Nós tivemos uma maneira de pacificação […]. Nós não podemos mexer na anistia para o passado, que foi uma construção com as Forças Armadas, que tiveram um papel muito importante.
Durante o meu governo, dei duas diretrizes ao ministro do Exército, para que ele transmitisse a todos.
A 1ª diretriz foi que eu era o comandante em chefe das Forças Armadas. E o dever de todo comandante é zelar pelos seus subordinados.
A 2ª diretriz era que a transição seria feita com as Forças Armadas e não contra as Forças Armadas. Essa era uma diretriz também de Tancredo, quando ele disse que jamais faria perseguições, jamais faria represália e que o passado seria esquecido.
No caso específico do ex-deputado Rubens Paiva, o que o Supremo deve fazer?
Eu não digo que o STF não deva examinar a anistia. Deve examinar a lei que tem e, dentro da lei, fazer as suas punições, se é que ele pode fazer.
O sr. não saberia dizer se essa punição é algo que deve ser aplicada?
Isso é um problema jurídico. Está submetido ao Supremo Tribunal. É a quem nós entregamos a guarda da Constituição.
O sr. foi alvo de muitas críticas durante sua passagem pelo Planalto. Chegou a processar algum jornal ou jornalista?
Nunca processei nenhum jornalista nem nenhum jornal. Eu achava que essa liberdade dada é como a da 1ª emenda à Constituição dos Estados Unidos, que nós seguimos como democracia.
O jornalista Paulo Francis (1930-1997) era um crítico ferino seu…
Tive muitos críticos ferinos. Eu acredito que a democracia e a liberdade de imprensa têm um poder tão grande que no futuro podem corrigir tudo o que foi dito.
Eu estou lendo um livro de [Yuval] Harari sobre informação e ele diz muito sobre isso. Estou vendo hoje com muita felicidade muitos atualmente fazendo uma leitura mais generosa a respeito do meu governo. Isso é a democracia. Não debito isso [revisionismo] à minha pessoa. Debito ao processo democrático. Eu deixei o governo sem ter tido nenhum dia de prontidão militar. Um país pacificado, que foi entregue a um adversário meu [Fernando Collor de Mello, que venceu a disputa presidencial em 1989].
O sr. não guardou mágoa de ninguém?
Eu nasci com a absoluta impossibilidade de ter ódio.
Só tenho que agradecer ao Criador. Eu sou muito religioso, você sabe. Ele me fez assim. Ele me deu tantas coisas, tantas oportunidades, colocou na minhas mãos as oportunidades e dificuldades e ao mesmo tempo me deu condições de superá-las. Eu não posso jamais ter raiva de ninguém.
E sei que cumpri aquele princípio Dele de perdoar os seus inimigos. Eu não tenho inimigos. Eu sempre tive adversários. Eu acho que essa é uma coisa nova na política brasileira que nós devemos superar e abandonar. A política feita para ter adversário, não para ter inimigos.
Há uma frase atribuída a Samuel Wainer [1910-1980] sobre esse tema no livro “O homem que estava lá” (2020). Ele teria dito que “o ódio é uma perda de tempo”.
É uma boa frase. O ressentimento é contra a gente mesmo. O ressentimento e o ódio prejudicam a nossa busca da felicidade. Aquilo que está na Constituição dos Estados Unidos, na frase que foi incluída por Thomas Jefferson [1743-1826].
A democracia é um sucesso no Brasil ao completar 40 anos. A economia, nem tanto. O PIB do Brasil nesse período cresceu 166%. O da China (que nem é uma democracia) cresceu 2.933%. Mas países democráticos tiveram mais sucesso que o Brasil. A Índia teve seu PIB crescendo 1.007% em 40 anos. A Coreia, 736%. Por que a economia no Brasil teve menos êxito do que a democracia?
Porque a democracia não significa soluções econômicas. A democracia mostra bem a volta da liberdade. E da liberdade, inclusive, na economia.
O processo econômico tem outras implicações, que não são aquelas de natureza institucional e dentro da própria sociedade, como ela se organiza.
Mas eu não sou tão pessimista. Já tivemos os anos dourados dos Estados Unidos. Já tivemos os anos dourados da Europa. Já tivemos os anos dourados da Ásia. O que resta do mundo para ter seus anos dourados são África e América Latina. Vai chegar a nossa vez e eu espero que seja neste século.
Eu disse uma vez ao Deng Xiaoping [1904-1997] [chefe do Comitê Central do Partido Comunista da China de 1978 a 1990] que o século 21 seria o século da China. E ele completou: “E do Brasil”. E eu disse: “E da América Latina”.
O Estado precisaria ser um pouco mais ágil, não tão grande, no Brasil? O país precisa de tantas estatais? De onde vem essa cultura da dependência do Estado?
Vem justamente do marxismo, que criou a cultura do planejamento. Essa [o planejamento] foi uma herança boa que o marxismo deixou para o mundo inteiro. Todo mundo passou a ter o seu planejamento.
O Brasil tem algumas empresas estatais icônicas como a Petrobras, Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal. Essas grandes empresas devem ser para sempre estatais?
A Petrobras e essas que você cita são empresas que agregaram o trabalho do povo brasileiro durante muitos anos. Nós não podemos entregar agora à iniciativa privada uma coisa que foi construída com os impostos pagos pelo povo durante esses anos todos.
O presidente Lula enfrenta dificuldades agora. A aprovação ao governo caiu. Apesar de a economia ter registrado crescimento robusto acima de 3% por 2 anos. E a taxa de desemprego ter sido baixa. Por que há insatisfação de parte dos eleitores?
Ninguém governa o tempo em que governa. As circunstâncias que existem tornam o presidente o escravo de sua circunstância. Como dizia Ortega y Gasset [1883-1955], o homem é ele e suas circunstâncias.
Quem são hoje os líderes políticos que merecem ser olhados com atenção?
Uma das piores falhas do movimento de 64 foi a extinção dos partidos políticos [por meio do Ato Institucional nº 2, de 1965, que permitiu apenas duas legendas, Arena, pró-governo, e MDB, de oposição consentida]. Os partidos eram uma escola. Nós nunca tivemos tradição de partidos nacionais. Sempre eram partidos regionais.
Se a gente olhar para os países que nos cercam, o Paraguai, Argentina e Chile, os partidos são centenários. E nós não tivemos essa tradição. Isso foi muito danoso para a formação de líderes. Nós vivemos um pouco uma crise de liderança. Mas estão aparecendo líderes bons, novos, como o presidente da Câmara, o deputado Hugo Motta [Republicanos-PB]. Tenho uma boa impressão dele.
E entre os governadores atuais?
Helder Barbalho [governador do Pará, pelo MDB]. Ronaldo Caiado [União Brasil, Goiás] está fazendo um bom governo. E o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas [Republicanos], também um excelente quadro.
O sr. defende o sistema eleitoral distrital-proporcional misto. Como seria possível ter esse modelo no Brasil?
O voto nos distritos seria para uma eleição majoritária, de 1 deputado por distrito. E todos os votos dados aos deputados seriam contados para as legendas. Dessa forma, a metade dos deputados seria eleita nos distritos –o mais votado em cada distrito. E, a outra metade, pelo voto total de votos de cada partido no Estado.
Aí teria de discutir se esses deputados fora do distrito serão escolhidos por lista partidária ou por um 2º voto dentro do distrito.
Vamos pegar um exemplo. O Acre tem 8 cadeiras na Câmara. O Acre seria dividido em 4 distritos. Cada distrito elegeria de maneira majoritária um deputado. E os votos que cada partido receberia dentro de cada distrito também seriam usados para escolher os outros 4 representantes do Acre. Mas o problema seria em como convencer o Congresso a dividir os distritos, não?
Você menciona agora o ponto mais difícil: dividir os distritos. O Brasil teve a tradição distrital do império, mas era um país que tinha uma população muito menor do que tem hoje. Não tínhamos a realidade que temos hoje. Nos grandes países em que a democracia se consolidou com o voto distrital, o sujeito já nasce no seu distrito. A partir dali, eles têm uma tradição, como na Inglaterra.
O senhor acredita que algum dia haverá consenso no Congresso para fazer essa mudança?
Eu acho que sim.
Hoje, na eleição proporcional, é uma briga entre os candidatos. Você tem como adversário o seu companheiro de partido. Isso não ajuda na existência de partidos nem na formação de líderes.
A Câmara agora pensa em aumentar as vagas de deputados de 513 para 527 deputados. É uma medida positiva?
O Brasil tem de fixar o número de vagas da Câmara de maneira definitiva.
Mas é positivo aumentar o número de deputados?
Acho que não é. Em nenhum lugar que tenha um aumento de deputados isso é uma solução para os problemas do parlamento. [Recomendaria] que refletissem melhor.
Temos de buscar uma fórmula que seja definitiva: não aumentar mais nem diminuir. Isso não significa que não se aumente agora, mas que seja de uma maneira definitiva.
O sr. está escrevendo um livro no qual que vai mencionar melhorias possíveis no sistema político eleitoral. Quando sai o livro?
Até o fim do ano. Vai se chamar “O Brasil no seu labirinto”.
Como se deve definir o que foram os atos de vandalismo de 8 de janeiro de 2023?
Foram episódios absolutamente impossíveis de a gente pensar que pudessem existir no Brasil. Vi aquilo como uma coisa vergonhosa para o Brasil. A definição do que foi, a Justiça está vendo. Se tiver as provas necessárias, deve punir.
O senhor ajudou na aprovação da Lei de Acesso à Informação, quando era presidente do Senado, em 2011. Como foi o processo para aprovar a LAI?
Eu não devo esconder a verdade dos fatos. Eu tenho que dizer e não é uma maneira de fazer um elogio a você. Você foi realmente o interlocutor. Como presidente do Senado, tive aquele tempo para nós aprovarmos uma lei e você foi a pessoa que me fez despertar para que essa lei fosse aprovada no Brasil, porque era um avanço na maneira que o povo brasileiro tinha de acesso às informações e que tem funcionado bem no Brasil.
Dos 123 livros que o senhor escreveu, quais são os seus prediletos?
Vou me fixar nos romances: “O Dono do Mar” [1995], “Saraminda” [2000], “A Duquesa vale uma Missa” [2007] e “O Norte das Águas” [1969]. Desses 4, eu acho que no “Dono do Mar” eu consegui fazer um romance que tem princípio, meio e fim, bem estruturado.
Como o sr. escreve? Em qual horário? É no computador?
No princípio, eu não tinha computador. Eu escrevia a máquina e à mão. Depois da era do computador, eu me adaptei. Hoje, eu escrevo no computador. Mas com uma técnica: um espaço maior entre as linhas e não corrijo os erros de digitação. Mando para minha secretária passar para papel. Corrijo no papel e mando de novo para minha secretária.
E aí tem um arquivo novo no computador?
Isso. É um processo em que eu chego a até 12 releituras.
O senhor escreve em algum horário específico do dia?
Eu sou um pouco disciplinado. Tenho uma organização desorganizada [risos]. Às 10h da noite eu me recolho à biblioteca e aí eu fico lendo e escrevendo. Se a coisa é boa, eu escrevo até a madrugada. Ou leio até a madrugada.
Seu horário predileto então é o da noite?
À noite. Mas eu leio também de manhã. Acordo muito cedo, e leio.
Qual a marca do computador que o senhor usa e programa que usa para escrever?
Meu 1º computador foi um Sharp, que me foi dado pelo Matias Machiline [1933-1994] [fundador Sharp]. Era um computador que levava um tempo… A gente ficava esperando que ele ligasse.
Hoje, eu tenho um Dell e escrevo no Word.
Esta entrevista foi marcada numa conversa minha como sr. pelo celular. O sr. é um usuário frequente do telefone celular?
Olha, eu uso sim. É por meio do celular que a gente muitas vezes trabalha, resolve as coisas. A gente antigamente tinha que comparecer e marcar hora.
E o senhor escreve no celular, mensagens de WhatsApp?
Eu escrevo com alguma dificuldade com esses 2 dedos [mostra os 2 polegares]. Primeiro eu escrevia com 1 dedo só. Agora, eu estou escrevendo com os 2. Mas bem devagar.
Comunica-se com a família por meio do WhatsApp? Tem um grupo da família?
Não. Eu não gosto de grupo. Não tenho participação em grupo. Quando alguém quer me meter em um grupo, eu caio fora.
E televisão? Que programas o senhor aprecia? Novelas?
Não. Nunca assisti a novela. Não quero censurar quem assiste, porque eu tenho dentro de casa minha mulher, que é bem devota das novelas. Eu vejo os programas de televisão de noticiário. Esses eu a acompanho. O “Jornal Nacional”, os telejornais.
E o hábito de leitura das notícias na mídia tradicional? Ainda lê em papel ou lê no computador ou tablet?
Eu tenho uma saudade imensa do papel! Eu me habituei e gostava de pegar no jornal. Gosto tanto que eu leio os jornais locais [de Brasília] toda manhã, no papel.
E os outros?
Outros eu leio no meu iPad.
O senhor navega na internet? Entra em endereços na internet e também nas redes sociais?
Nas redes sociais e na internet em geral eu escolho alguns. Com 95 anos que vou fazer no próximo mês eu acho que a gente já pode distinguir o que é bom, o que é mau. O que é interessante, o que não é. A gente vai passando aqui, ali, descartando o que não é importante. Até porque eu já estou na fase da releitura.
Quem são os autores contemporâneos brasileiros que o sr. aprecia?
O Itamar Vieira Junior. Eu li um livro dele, “Torto Arado” [2019], e achei muito bom. É um livro forte, muito denso, quando ele começa com a cena do corte da língua. Uma cena marcante. Uma técnica de prender o leitor, e, ao mesmo tempo, o livro tem princípio, meio e fim.
O que o sr. está relendo atualmente?
Eu sempre releio o Guimarães Rosa [1908-1967]. O Machado de Assis [1839-1908] é impossível a gente não deixar de reler, sobretudo as crônicas.
Como é a sua rotina? E a saúde? Tem dormido bem?
Eu tenho um problema de sono. Sempre dormi pouco, 4 ou 5 horas. Talvez um costume de estudante que varava a noite estudando e tomando café. Hoje, já estou me recuperando: estou dormindo mais, umas 6 horas.
Qual é o segredo para chegar nessa fase da vida, saudável, com a cabeça funcionando bem aos quase 95 anos?
Os chineses dizem que é o seguinte: dormir muito, comer pouco e não discutir com mulher [risos].
Qual conselho o sr. daria para o presidente que será eleito em 2026?
Eu acho que o meu partido, o MDB, deve manter o apoio a Lula. Eu tenho essa opinião. Ele [Lula] ainda é o maior líder popular que tem no país. Tem experiência. Está vivendo uma crise de popularidade. Mas os governos sempre alternam em matéria de popularidade.
Só que uma sucessão é sempre imprevisível. Basta ver a política brasileira. O suicídio de Getúlio Vargas [1954]. A doença de Tancredo Neves [1985]. Muitas coisas acontecem. A própria primeira eleição de Lula é consequência das instituições criadas a partir de 1985. Nós tivemos a oportunidade de ter presidentes militares, advogados, engenheiros, médicos e chegamos a um operário no poder. É uma coisa muito difícil.
Se dissessem na Inglaterra que um operário iria ao poder, eles cairiam de costas.
Eu sou otimista. Nós consolidamos a democracia. Na minha mão, ela não morreu. Ela foi criada. Foi consolidada. Nós tivemos um período de muitas críticas. Eu paguei por essas críticas. Períodos difíceis. Períodos de ameaça de retrocesso. Tudo isso tivemos. Passei o governo a um opositor, com as instituições consolidadas. Tanto que as instituições venceram o processo de impeachment do presidente que me sucedeu [Fernando Collor, que foi impedido em 1992]. Também tivemos outro impeachment [de Dilma Rousseff, em 2016]. E tivemos esses acontecimentos do 8 de Janeiro.
O Poder360 preparou uma série especial de reportagens sobre os 40 anos de democracia no Brasil. Leia abaixo:
Leia as entrevistas da série especial: