Enviado especial à Armênia – Os zhingyalov hats são pães de massa fina, recheados com verduras e ervas frescas, picadas bem fininhas. A receita tradicional na culinária armênia surgiu durante tempos de escassez e dificuldades extremas, quando a criatividade é colocada à prova.
Bastante populares em cafés e lanchonetes de Erevan, a capital da Armênia, os zhingyalov hats também eram consumidos em um antigo enclave do povo armênio localizado no vizinho Azerbaijão.

Os Zhingyalov Hats são feitos com um pão achatado e enrolado, recheado com ervas, verduras e vegetais frescos
Com cerca de 4.400 quilômetros quadrados, Nagorno-Karabakh é um pouco menor do que o Distrito Federal e vem sendo palco de disputas políticas, culturais e religiosas há mais de um século.
Lá, os zhingyalov hats funcionavam como símbolos de resistência cultural. Nos períodos mais duros, eram a base da alimentação dos armênios que lutavam contra os azeris, povo de origem muçulmana no que também reivindicavam Nagorno-Karabakh.
Entenda a ocupação histórica do território de Nagorno-Karabakh:

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1 de 5 Durante o Imprério Russo (1721 a 1917), a região de Nagorno-Karabakh já era ocupada pelo povo armênio Arte/Metrópoles
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2 de 5 Enquanto a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (1922 a 1991) existiu, o poder central intermediava um acordo de convivência entre os armênios e os azeris na região. Nagorno-Karabakh era uma ocupação armênia Arte/Metrópoles
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3 de 5 No processo de desintegração da URSS, aumentaram as tensões em Nagorno-Karabakh e, em 1988, explode um primeiro conflito armado. Após seis anos de guerra, os armênios vencem, ampliam seu território e fundam a República de Artsaque Arte/Metrópoles
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4 de 5 Em 2020, o Azerbaijão toma Nagorno-Karabakh após uma guerra de 44 dias Durante o conflito, cerca de 90 mil pessoas deixam o território em direção à Armênia e à Rússia. A guerra enfraquece a República de Artsaque e diminui seus limites territoriais Arte/Metrópoles
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5 de 5 Três anos depois, um novo golpe. Nagorno-Karabakh é bombardeada pelo Azerbaijão apesar de um acordo cessar-fogo estar em vigor. Nesse momento, toda a população do enclave armênio (que havia retornado após a guerra de 2020) vai embora pelo corredor de Lachin. Atualmente, Nagorno-Karabakh é uma cidade fantasma Astrig Agopian/Getty Images
Atualmente, Nagorno-Karabakh é apenas um estado fantasma, praticamente inabitado. A estimativa do governo azeri é de que apenas 7,9 mil pessoas estejam na região. Quando era território armênio, a população local girava em torno de 100 mil pessoas.
Os armênios, consideram a disputa por Nagorno-Karabakh muito mais que uma batalha territorial. Para eles, a terra de muitas colinas e verde abundante representa o direito à identidade e à cultura, uma vez que os armênios estavam ali antes das fronteiras dos estados nacionais terem se estabelecido.
Já os azeris, predominantemente muçulmanos, enxergaram a presença do povo armênio na região como uma interferência à soberania do Azerbaijão, país criado na década de 1990, após o esfacelamento da
Vitórias e derrotas
A história pessoal do internacionalista e defensor dos direitos humanos Artak Beglaryan se mistura à guerra por Nagorno-Karabakh. Artak nasceu justamente em 1988, ano do início do conflito armado, e seu pai morreu no campo de batalha, quando ele tinha apenas 4 anos.
A primeira trégua entre armênios e azeris veio em 1994, intermediada pelo governo russo, após confrontos que mataram entre 20 mil e 30 mil pessoas. “Perdi minha visão em 1995, logo após o cessar-fogo”, relembra Beglaryan. “Foi enquanto brincava com os meus amigos no nosso quintal, em Stepanakert [principal cidade e capital do enclave].”
Os armênios de Nagorno-Karabakh – ou da República de Artsaque, como também denominavam o território –, saíram em vantagem ao fim da primeira onda de conflitos. Além de garantir a permanência no enclave, ganharam todos os territórios que tinham anexado durante a guerra.
Beglaryan conta que viu seu povo sair vitorioso da guerra, com uma expansão territorial e uma declaração de independência.

Artak Beglaryan (esquerda) e Gegham Stepanyan (direita) durante entrevista na capital da Armênia. Erevan,
Formado em ciências políticas em Londres, Beglaryan ocupou cargos públicos no governo autônomo da República de Artsaque. No último deles, sentou na cadeira de ministro de Estado, apesar de a nação não ser reconhecida como Estado independente na Organização das Nações Unidas.
A trajetória ascendente de Beglaryan seria interrompida por uma nova guerra, entretanto. Atualmente, ele está refugiado na Armênia e, de lá, luta para que a comunidade internacional volte os olhos para aquela parte do mundo.
A mesma reivindicação é feita pelo ex-defensor dos direitos humanos (ombudsman) de Artsaque, Gegham Stepanyan.
“Acho que, no momento, devemos entender que Artsaque deve se tornar uma agenda na arena internacional, em discussões internacionais. E o nosso retorno [para lá] também deve ser um item na agenda das negociações de um acordo de paz entre Armênia e Azerbaijão”, disse Stepanyan, durante entrevista em um dos prédios centrais na capital da Armênia.
A interferência da União Soviética
No longo histórico de disputas entre armênios e azeris por Nagorno Karabakh – ou Artsaque –, a criação e a dissolução da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS) desempenharam um papel central.
Os socialistas soviéticos chegaram ao poder em 1917, depois de uma revolução. Liderados pelos bolcheviques ligados a Vladimir Lenin, eles derrubaram o Império Russo do Czar Nicolau II. Com a queda do reino, que compreendia uma área de aproximadamente 22,8 milhões de km², os novos líderes precisaram lidar com reivindicações de diferentes povos que lá estavam. Os armênios étnicos que habitavam uma parte do território do Azerbaijão eram um desses povos.
Veja na galeria um resumo da história:

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2 de 3 Arte/Metrópoles
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3 de 3 Arte/Metrópoles
Novo conflito no século XXI
O clima na República de Artsaque era tranquilo na madrugada de 27 de setembro de 2020. O ex-soldado Vanush Jan cumpria mais um dia de serviço em uma unidade militar, parte da assistência que a Armênia enviava a Nagorno-Karabakh.
Ele lembra que amanhecia quando apareceram no céu artilharias e drones atacando posições armênias. A justificativa para a ação militar se tornaria pública em uma nota do Ministério das Relações Exteriores do Azerbaijão: o governo do país acusou os armênios de quebrarem a trégua costurada pelos russos ainda na década de 1990.
“Nós ficamos em pânico naquele momento, não entendíamos o que estava acontecendo. Não tínhamos atacado eles”, relembra Vanush, que servia na divisão de defesa aérea. “Subimos para as posições de batalha, e lá vimos que a situação era muito ruim. Tiros vinham de todos os lados, com explosões de estilhaços, a nossa chance de sobrevivência era igual a zero”, conta ele, que foi atingido ainda no primeiro dia da guerra.
Surpreendidos pelo ataque inesperado e em desvantagem em relação aos recursos militares, os armênios foram derrotados pelas Forças Armadas do Azerbaijão em apenas 44 dias. Os azeris venceram a guerra e reconquistaram não só os territórios perdidos no primeiro conflito, como também ocuparam Artsaque. A nova onda de violência deixou um rastro de sangue no enclave, e cerca de 7 mil pessoas foram mortas durante o período.
Quando Vanush saiu do hospital, três meses depois de ser ferido no primeiro dia de guerra, um novo cessar-fogo havia entrado em vigor.
Como parte do plano de paz, a administração autônoma de Artsaque aceitou retirar as tropas da Armênia da região e também permitiu que um contingente russo fosse enviado para o enclave, com o objetivo de fiscalizar o cumprimento da trégua. Os soldados russos também seriam responsáveis por monitorar a única ligação do enclave com a Armênia: o Corredor de Lachin.

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1 de 3 O Corredor de Lachin foi criado em 1992, após a primeira guerra em Nagorno-Karabakh Edward Crawford/SOPA Images/LightRocket via Getty Images
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2 de 3 A estrada, no meio das montanhas, era a única ligação entre o território de Nagorno-Karabakh e a Armênia Resul Rehimov/Anadolu Agency via Getty Images
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3 de 3 O corredor era um ponto estratégico para os moradores de Artsaque Resul Rehimov/Anadolu Agency via Getty Images
O golpe final
O cessar-fogo, no entanto, não extinguiu a tensão local. Confrontos e acusações mútuas de rompimento do acordo de paz tornaram-se cada vez mais comuns entre Nagorno-Karabakh e o Azerbaijão.
O clima de disputa fez ativistas azeris ocuparem o Corredor de Lachin em 12 de dezembro de 2022, dificultando a entrada de itens básicos para os armênios, como alimentos e medicamentos. Nesse momento, começou a saída de parte da população local em direção à Armênia e à
A situação ganhou contornos dramáticos em 19 de setembro de 2023. Alegando ter como alvo posições militares armênias remanescentes na região e depósitos de armas, o Ministério da Defesa do Azerbaijão anunciou que as tropas do país invadiriam Nagorno-Karabakh em uma operação antiterrorista. Quem ainda estavam lá precisou ir embora.
A rendição das Forças de Defesa de Artsaque aconteceu em cerca de 24 horas e resultou no colapso do governo local, que aceitou dissolver seu Exército. Naquele momento, 100 mil armênios tinham deixado suas casas e os núcleos urbanos de Nagorno-Karabakh viraram cidades fantasmas.

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1 de 6 A República de Artsaque foi esvaziada em 2023 Davit Hakobyan
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2 de 6 Depois de as tropas do Azerbaijão tomarem o enclave armênio, a população da região decidiu abandonar o local Davit Hakobyan
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3 de 6 Antes disso, os armênios enfrentaram meses de sofrimento Davit Hakobyan
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4 de 6 Com o bloqueio do Corredor de Lachin, itens básicos, como alimentos e remédios, deixaram de chegar ao local Davit Hakobyan
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5 de 6 A estimativa é de que cerca de 108 mil pessoas deixaram Artsaque Davit Hakobyan
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6 de 6 A maioria delas, entre 90 e 95 mil, buscou refúgio na Armênia. A outra parte foi para a Rússia Davit Hakobyan
Paz impossível?
Depois que Nagorno-Karabakh se tornar um território fantasma, a luta dos armênios segue no campo diplomático. Desde o êxodo e esvaziamento do enclave, Baku – onde está instalado o centro administrativo do Azerbaijão – e Erevan discutem um acordo de paz.
As tratativas avançaram em março de 2025, que pode significar a reocupação de Nagorno-Karabakh. Dois pontos, porém, têm travado as negociações e a assinatura do acordo.
O governo do primeiro-ministro da Armênia, Não há certeza, contudo, se isso passaria pela aprovação da população, já que um plebiscito precisaria confirmar a decisão.
O segundo item do acordo consiste na criação de um novo corredor, esse dentro da Armênia. O trajeto ligaria o enclave azeri do Naquichevão, que fica entre a Armênia e a Turquia, ao Azerbaijão. O corredor é visto com desconfiança, pois permitiria o trânsito do Exército do Azerbaijão pelo território armênio.

O Corredor de Zangezur é visto como uma violação à soberania armênia e uma chance de tropas azeris se instalarem dentro do território do país.
Em meio ao conflito de interesses, os refugiados de Artsaque consideram difícil responder às perguntas sobre o futuro – assim como relembrar o passado.
“Infelizmente, parei de pensar no futuro ou de planejar qualquer coisa”, revelou uma ex-moradora de Artsaque, após desistir de uma entrevista sobre sua história de vida, por não se sentir bem relembrando o passado. “Desde que me lembro, embora sempre tenhamos vivido em meio à incerteza e às guerras, criamos coisas, construímos casas, estudamos, mas, em um segundo, perdemos tudo o que demoramos muito tempo para construir. Agora, vejo que muitas pessoas de Artsaque pararam de pensar no futuro ou de planejá-lo, porque ele é muito frágil”, disse.