A taxa de inadimplência do Fies (Fundo de Financiamento ao Estudante do Ensino Superior) alcançou 59,3% em 2024, o maior índice desde a criação do programa. Isso significa que 6 em cada 10 estudantes financiados estão devendo. E a dívida não é pequena: uma média de R$ 46.000 por aluno.
Os dados são do FNDE (Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação) e foram obtidos via LAI (Lei de Acesso à Informação). As informações são referentes até maio de 2025.
Em 2015, os inadimplentes eram só 33% dos estudantes do Fies. A diferença representa uma alta de quase 80% em menos de uma década.
Com isso, a dívida total da carteira ativa do Fies passou de R$ 92,8 bilhões, em 2024, para R$ 93,8 bilhões em 2025.
Parte dos recursos do Fies vem diretamente do orçamento do MEC (Ministério da Educação) –ou seja, do Tesouro Nacional abastecido por impostos pagos por toda a população.
Outra parte, bem menor, tem origem nos prêmios de loterias federais não sacados, administrados pela Caixa Econômica Federal. Mas pouco –R$432 mil, em 2024.
Portanto, quando um estudante pega o empréstimo e não consegue pagar, a conta vai para todos os brasileiros. O equilíbrio financeiro do fundo é afetado e compromete a capacidade do governo de investir em outras áreas da educação.
O que era para ser um instrumento de inclusão se torna um passivo fiscal de grandes proporções.
Com mais devedores, menos estudantes se interessam pelo programa. A adesão também caiu: os novos contratos firmados por ano recuaram 88% desde 2015.
A região concentra 1,01 milhão de contratos ativos. O Nordeste vem em seguida, com 711 mil.
Neste 1º semestre de 2025, foram apenas 34.000 novos financiamentos. O recuo acompanha mudanças nas regras, como o fim da carência total e o início dos pagamentos durante o curso.
O curso mais financiado é direito (397 mil), seguido por enfermagem (201 mil) e engenharia civil (172 mil).
Até 2017, o Fies funcionava sob regras mais vantajosas para os estudantes. Os contratos firmados até aquele ano permitiam que o aluno cursasse a graduação sem pagamento durante o período letivo. A dívida começava a ser cobrada 18 meses após a conclusão do curso.
O financiamento podia ser quitado em até 3 vezes o tempo de duração da formação, com taxa de juros de 3,4% ao ano –abaixo das praticadas no mercado. Em 2016, o governo federal chegou a reduzir os juros a 0% para alguns perfis.
Essas condições foram alteradas com a criação do “Novo Fies”, sancionado no fim de 2017, no governo de Michel Temer (MDB).
A partir do 1º semestre de 2018, o novo modelo instituiu o pagamento atrelado à renda –até 20% do salário descontado automaticamente para pagar a dívida, depois do aluno se formar.
A carência foi eliminada e estudantes também passaram a pagar encargos trimestrais de até R$ 150 durante a graduação.
Nos casos de financiamento parcial, a coparticipação se tornou obrigatória para cobrir a diferença entre o valor do curso e o montante financiado.
Em nota, o Ministério da Educação afirmou que trabalha para ampliar o acesso ao ensino superior com condições diferenciadas para alunos de baixa renda. A pasta reconhece a necessidade de aprimorar o programa e afirma que renegociações já somam mais de 387 mil contratos.
Elizabeth Guedes, conselheira do CNE (Conselho Nacional de Educação) e também presidente da ANUP (Associação Nacional das Universidades Particulares), afirmou que a inadimplência no programa é um problema cumulativo e exacerbado pelas mudanças de 2018.
Segundo ela, a Caixa também nunca adotou de forma correta o pagamento contingenciado à renda.
E ao impor encargos trimestrais durante a graduação, o programa elevou o custo do financiamento: tornou o acesso ao ensino superior ainda mais difícil para quem já enfrenta limitações financeiras.
Após um pico em 2022, com 250 mil contratos liquidados, o número de quitações voltou a cair.
Em 2024, foram 132 mil liquidações. No 1º semestre de 2025, apenas 42.000:
Sobre os programas de renegociação, Guedes afirmou que poderiam ter êxito –se fossem bem desenhados.
“Funciona para quem deve carro, consórcio, cartão. Mas o estudante inadimplente é negativado e não consegue renegociar. É cobrado o valor total da dívida, com principal e juros. Ninguém tem condição de pagar R$ 50 mil à vista”, disse.
Na avaliação da economista e ex-diretora de educação do Banco Mundial, Cláudia Costin, o Fies ampliou, sim, o acesso ao ensino superior no Brasil. Muitos estudantes recorrem a ele por não conseguirem ingressar em universidades públicas via Sisu –cuja seleção é mais competitiva.
No entanto, os desafios vão além da entrada na universidade. O alto custo e outras barreiras estruturais impactam a permanência e a conclusão dos cursos. E o ciclo de abandono compromete a eficácia do programa.
Isso ajuda a explicar por que o país ainda registra baixa taxa de adultos com ensino superior completo– cerca de 33% graduados. A maioria dos brasileiros ainda interrompe os estudos no ensino médio.
A alta taxa de abandono, segundo Costin, é especialmente em magistérios. De acordo com ela, muitos entram nessas áreas por ser menos competitivo, mas acabam desistindo ao perceberem que não têm afinidade com a carreira ou que não conseguirão se manter financeiramente como professores.
E os dados mostram que a maioria dos financiamentos do FIES é destinada a bacharelados. Licenciaturas e cursos tecnológicos representam uma fatia bem menor da carteira do programa:
O cenário acende um alerta. Sem reformulação efetiva, o Fies corre o risco de se tornar financeiramente insustentável e socialmente irrelevante: “Foi desenhando novas regras, mas não necessariamente compreendendo como isso afetaria os estudantes. Especialmente os de mais baixa renda”, disse Costin.
A economista defende a revisão periódica do programa a cada 5 anos com a inclusão de pesquisas com ex-alunos –tanto os que concluíram os cursos quanto os que abandonaram– para entender as causas da inadimplência.
“Muda o perfil dos estudantes, mudam os hábitos, muda o mercado. E o Fies precisa acompanhar essas transformações”, afirmou.
O MEC, o Tesouro e a Casa Civil têm buscado soluções, incluindo mudanças no prazo de “honra” –quando o fundo cobre dívidas superiores a 360 dias de atraso–. No entanto, Guedes declarou que “o risco hoje é a inoperância da Caixa”.
A instituição é ao mesmo tempo agente financeiro, operadora e gestora do fundo. “E mesmo assim, não cobra de forma eficiente e não implantou o sistema como a lei determinou”, disse.
O Poder360 procurou a Caixa Econômica Federal para perguntar se gostaria de se manifestar sobre a execução do Fies. Não houve resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado caso a Caixa envie manifestação.