As eleições legislativas de 26 de outubro na Argentina colocarão em xeque a popularidade do programa político do presidente Javier Milei (La Libertad Avanza, direita), ao passo que funcionará como teste de integração da oposição.
Movimento mais consolidado, a coalizão peronista Fuerza Patria, um grupo heterogêneo que reivindica a pauta de justiça social defendida por Juan Domingo Perón (1895-1974), tenta capitalizar em cima da crescente rejeição às medidas do libertário.
Fernando Sarti Ferreira, doutor em História Econômica pela USP (Universidade de São Paulo), afirmou que a atual mobilização contra o governo Milei é, antes de tudo, uma reação popular espontânea às políticas do presidente.
Para ele, a oposição se organiza em torno do peronismo, mas não apenas. Ferreira destaca ainda a importância das províncias no debate nacional.
“As províncias argentinas dependem bastante do governo federal, e isso foi um ponto de muita tensão ao longo dos 2 anos do governo do Milei”, em razão da política econômica restritiva do libertário, disse o pesquisador. Com isso, governadores que não necessariamente se viam dentro do espectro peronista passaram a fazer parte da oposição ao presidente.
A coalizão Províncias Unidas surge desse impasse e tem se colocado como uma alternativa na disputa polarizada entre peronistas e integrantes do La Libertad Avanza. O grupo político é formado por governadores de Córdoba, Santa Fé, Corrientes, Chubut, Jujuy e Santa Cruz, que apoiaram a eleição do ex-presidente Mauricio Macri.
Doutor em Ciências Sociais pela UBA (Universidad de Buenos Aires), o argentino Andrés Nicolás Funes enfatiza a relevância da derrubada de vetos do presidente conquistada pela oposição. Para ele, isso mostra “que há algo no ecossistema da política institucional que se mostra relutante” à governança de Milei.
“É muito interessante o que aconteceu com os vetos, pois eles conseguiram unir setores que se odiavam, como o radicalismo e o socialismo, figuras mais ligadas ao Partido Justicialista ou ao kirchnerismo, e conseguiram chegar a um acordo que era preciso dar um basta em Milei”, afirmou.
O presidente Javier Milei se elegeu com um discurso contrário ao populismo e com ênfase na austeridade fiscal. Em quase 2 anos de mandato, a inflação despencou, mas a frágil condição econômica persiste -a ponto do governo argentino recorrer a um apoio financeiro de U$S 20 bilhões aos Estados Unidos, que atrelou o resgate a uma vitória do libertário nas eleições.
Em meio a escândalos que rondam o governo, como a suposta ligação de aliados ao narcotráfico e a acusação de corrupção contra Karina Milei, irmã e secretária-geral do presidente, a atual administração da Casa Rosada tem sofrido uma série de reveses políticos que põem em risco a já tensa governabilidade do argentino.
Em agosto de 2025, a oposição conseguiu barrar o veto do presidente ao apoio a pessoas com deficiência. Na ocasião, o veto ao aumento de aposentadorias foi mantido. Como resultado da série de cortes de gastos impostos por Milei, grupos vinculados às universidades públicas e os aposentados têm protestado contra o governo.
A insatisfação popular demonstrou força também nas eleições da província de Buenos Aires, em setembro. A coalizão peronista Fuerza Patria obteve 14 pontos percentuais de vantagem sobre o partido de Milei. Pressionado, o presidente admitiu a derrota, mas afirmou que não abriria mão do equilíbrio fiscal.
Passados 80 anos de seu nascimento como movimento, o peronismo segue sendo a força central e aglutinadora da política argentina -mesmo quando se encontra fora da Presidência, como se dá em 2025.
O argentino Andrés Ernesto Ferrari Haines, professor de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), explica que o fenômeno surgiu em razão da não integração de grande parte da população. Para ele, desde então, “sempre que há um processo de exclusão social, o peronismo ressurge”.
Ferreira, doutor pela USP, afirmou que a “defesa de uma política mais autônoma, de estímulo à economia, de desenvolvimento nacional” pelo peronismo o torna propício a canalizar essa insatisfação popular.
Para Funes, o peronismo passa hoje por uma etapa de transição. “Eu diria que estamos em um processo de incorporação de heterogeneidades, que estão se aproximando, mas ainda falta a articulação, e acredito que o momento da articulação não é exclusivamente peronista”, afirmou.
O peronismo passou por desgastes desde a última gestão de Cristina Kirchner (2007-2015). A ex-presidente é voz proeminente do kirchnerismo, vertente peronista que, para Funes, resgatou alguns dos princípios de justiça social chaves do movimento quando de sua criação, em 1945.
O kirchnerismo sofreu críticas dentro e fora do peronismo, em razão de suas políticas econômicas e escândalos de corrupção, mas ainda hoje capitaneia o movimento. Cristina está em prisão domiciliar desde junho de 2025, condenada por desvio de dinheiro público.
Desde então, há um espaço vago dentre as lideranças peronistas, ao passo que o movimento recapitula sua influência na sociedade argentina, agora como oposição.
Haines, professor da UFRGS, afirmou que não está claro qual seria o projeto peronista para o futuro, em caso de expansão no congresso durante as eleições. “Do ponto de vista do conteúdo dos programas políticos, e não da retórica política, não há tanta diferença do de sempre”.
“Por isso está mais claro que Milei está perdendo apoio do que o fato de que alguém está ganhando. Isso na Argentina se chama ‘voto bronca’. As pessoas votam contra alguém porque estão frustradas com o governo”, e não necessariamente por acreditar no projeto político da oposição, explicou Haines.
De acordo com o professor, é mais provável que os peronistas caminhem para um caminho de equilíbrio das contas públicas, em voga na sociedade argentina, mas sem abrir mão da inclusão social.
Funes destaca o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, ex-ministro da Economia de Cristina mas que obteve uma trajetória própria, como um nome a se observar dentro do cenário peronista.
A província de Kicillof abarca 38,6% da população argentina e tem uma diversificada produção, que vai de fábricas e indústrias próximas à capital do país até campos onde se produz soja.
“Nesse contexto, Kicillof está conseguindo enfrentar a tempestade que representa Milei, e acredito que ele não interpela apenas o eleitor peronista, e isso é o que mais me interessa no seu fenômeno”, relata.
Para Funes, o sucesso do futuro peronista necessariamente passa pelo retorno da comunicação com as “pessoas de carne e osso, que sofrem”.
“O que se precisa recuperar é a dignidade. Porque o peronismo, se por algo se caracterizou, foi por dignificar os setores populares, por mostrar a eles que havia outro tipo de vida possível”, afirmou.
Ainda que de caráter legislativo, a votação de 26 de outubro na Argentina ditará os próximos anos do mandato de Milei, e pode indicar a força que adquire a oposição para a próxima eleição presidencial.