• Sábado, 18 de outubro de 2025

Oposição a Milei passa pelo peronismo, mas não só

Com vistas às eleições legislativas em 26 de outubro, forças políticas se mobilizam para capitalizar em cima de insatisfação popular.

As eleições legislativas de 26 de outubro na Argentina colocarão em xeque a popularidade do programa político do presidente Javier Milei (La Libertad Avanza, direita), ao passo que funcionará como teste de integração da oposição.

Movimento mais consolidado, a coalizão peronista Fuerza Patria, um grupo heterogêneo que reivindica a pauta de justiça social defendida por Juan Domingo Perón (1895-1974), tenta capitalizar em cima da crescente rejeição às medidas do libertário.

Fernando Sarti Ferreira, doutor em História Econômica pela USP (Universidade de São Paulo), afirmou que a atual mobilização contra o governo Milei é, antes de tudo, uma reação popular espontânea às políticas do presidente. 

Para ele, a oposição se organiza em torno do peronismo, mas não apenas. Ferreira destaca ainda a importância das províncias no debate nacional.

As províncias argentinas dependem bastante do governo federal, e isso foi um ponto de muita tensão ao longo dos 2 anos do governo do Milei”, em razão da política econômica restritiva do libertário, disse o pesquisador. Com isso, governadores que não necessariamente se viam dentro do espectro peronista passaram a fazer parte da oposição ao presidente.

A coalizão Províncias Unidas surge desse impasse e tem se colocado como uma alternativa na disputa polarizada entre peronistas e integrantes do La Libertad Avanza. O grupo político é formado por governadores de Córdoba, Santa Fé, Corrientes, Chubut, Jujuy e Santa Cruz, que apoiaram a eleição do ex-presidente Mauricio Macri.

Doutor em Ciências Sociais pela UBA (Universidad de Buenos Aires), o argentino Andrés Nicolás Funes enfatiza a relevância da derrubada de vetos do presidente conquistada pela oposição. Para ele, isso mostra “que há algo no ecossistema da política institucional que se mostra relutante” à governança de Milei.

É muito interessante o que aconteceu com os vetos, pois eles conseguiram unir setores que se odiavam, como o radicalismo e o socialismo, figuras mais ligadas ao Partido Justicialista ou ao kirchnerismo, e conseguiram chegar a um acordo que era preciso dar um basta em Milei”, afirmou.

O presidente Javier Milei se elegeu com um discurso contrário ao populismo e com ênfase na austeridade fiscal. Em quase 2 anos de mandato, a inflação despencou, mas a frágil condição econômica persiste -a ponto do governo argentino recorrer a um apoio financeiro de U$S 20 bilhões aos Estados Unidos, que atrelou o resgate a uma vitória do libertário nas eleições.

Em meio a escândalos que rondam o governo, como a suposta ligação de aliados ao narcotráfico e a acusação de corrupção contra Karina Milei, irmã e secretária-geral do presidente, a atual administração da Casa Rosada tem sofrido uma série de reveses políticos que põem em risco a já tensa governabilidade do argentino.

Em agosto de 2025, a oposição conseguiu barrar o veto do presidente ao apoio a pessoas com deficiência. Na ocasião, o veto ao aumento de aposentadorias foi mantido. Como resultado da série de cortes de gastos impostos por Milei, grupos vinculados às universidades públicas e os aposentados têm protestado contra o governo.

A insatisfação popular demonstrou força também nas eleições da província de Buenos Aires, em setembro. A coalizão peronista Fuerza Patria obteve 14 pontos percentuais de vantagem sobre o partido de Milei. Pressionado, o presidente admitiu a derrota, mas afirmou que não abriria mão do equilíbrio fiscal.

Passados 80 anos de seu nascimento como movimento, o peronismo segue sendo a força central e aglutinadora da política argentina -mesmo quando se encontra fora da Presidência, como se dá em 2025.

O argentino Andrés Ernesto Ferrari Haines, professor de Economia e Relações Internacionais da Faculdade de Ciências Econômicas da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), explica que o fenômeno surgiu em razão da não integração de grande parte da população. Para ele, desde então, “sempre que há um processo de exclusão social, o peronismo ressurge”.

Ferreira, doutor pela USP, afirmou que a “defesa de uma política mais autônoma, de estímulo à economia, de desenvolvimento nacional” pelo peronismo o torna propício a canalizar essa insatisfação popular.

Para Funes, o peronismo passa hoje por uma etapa de transição. “Eu diria que estamos em um processo de incorporação de heterogeneidades, que estão se aproximando, mas ainda falta a articulação, e acredito que o momento da articulação não é exclusivamente peronista”, afirmou.

O peronismo passou por desgastes desde a última gestão de Cristina Kirchner (2007-2015). A ex-presidente é voz proeminente do kirchnerismo, vertente peronista que, para Funes, resgatou alguns dos princípios de justiça social chaves do movimento quando de sua criação, em 1945.

O kirchnerismo sofreu críticas dentro e fora do peronismo, em razão de suas políticas econômicas e escândalos de corrupção, mas ainda hoje capitaneia o movimento. Cristina está em prisão domiciliar desde junho de 2025, condenada por desvio de dinheiro público.

Desde então, há um espaço vago dentre as lideranças peronistas, ao passo que o movimento recapitula sua influência na sociedade argentina, agora como oposição.

Haines, professor da UFRGS, afirmou que não está claro qual seria o projeto peronista para o futuro, em caso de expansão no congresso durante as eleições. “Do ponto de vista do conteúdo dos programas políticos, e não da retórica política, não há tanta diferença do de sempre”.

Por isso está mais claro que Milei está perdendo apoio do que o fato de que alguém está ganhando. Isso na Argentina se chama ‘voto bronca’. As pessoas votam contra alguém porque estão frustradas com o governo”, e não necessariamente por acreditar no projeto político da oposição, explicou Haines.

De acordo com o professor, é mais provável que os peronistas caminhem para um caminho de equilíbrio das contas públicas, em voga na sociedade argentina, mas sem abrir mão da inclusão social.

Funes destaca o governador da província de Buenos Aires, Axel Kicillof, ex-ministro da Economia de Cristina mas que obteve uma trajetória própria, como um nome a se observar dentro do cenário peronista.

A província de Kicillof abarca 38,6% da população argentina e tem uma diversificada produção, que vai de fábricas e indústrias próximas à capital do país até campos onde se produz soja.

Nesse contexto, Kicillof está conseguindo enfrentar a tempestade que representa Milei, e acredito que ele não interpela apenas o eleitor peronista, e isso é o que mais me interessa no seu fenômeno”, relata.

Para Funes, o sucesso do futuro peronista necessariamente passa pelo retorno da comunicação com as “pessoas de carne e osso, que sofrem”.

O que se precisa recuperar é a dignidade. Porque o peronismo, se por algo se caracterizou, foi por dignificar os setores populares, por mostrar a eles que havia outro tipo de vida possível”, afirmou.

Ainda que de caráter legislativo, a votação de 26 de outubro na Argentina ditará os próximos anos do mandato de Milei, e pode indicar a força que adquire a oposição para a próxima eleição presidencial.

Por: Poder360

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