Falta diálogo entre os Poderes sobre questão fiscal, diz “pai” da LRF
Ao Metrópoles, José Roberto Afonso afirma que não há política macroeconômica no Brasil e diz que é preciso "reformar a ideia de reforma"
Depois de uma semana marcada pela guerra declarada entre o Congresso Nacional e o governo do presidente Luiz Inácio da Silva (PT), com , é necessário que os Poderes da República promovam um diálogo técnico sobre a questão fiscal, com “serenidade” e “dados”, sem radicalismos ou revanchismos de parte a parte.
A avaliação é do economista José Roberto Afonso, professor do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e da Universidade de Lisboa. Ele foi assessor técnico especial do Senado Federal, da Câmara dos Deputados e da Assembleia Nacional Constituinte e um dos formuladores da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), , no segundo mandato do então presidente (PSDB).
Em entrevista ao Metrópoles, Afonso afirma que tem faltado diálogo entre as diversas esferas de poder no Brasil e cita o exemplo bem-sucedido da LRF, que completou 25 anos no mês passado. “No caso da LRF, nós sentamos com os estados e municípios, negociamos o projeto artigo por artigo, e muito do que está na lei nós, que éramos técnicos do governo, nem tínhamos ideia, nem tínhamos pensado naquilo”, recorda.
“Precisamos valorizar mais a democracia e o debate técnico, desde que ele seja feito com ordem, serenidade e, sobretudo, com dados. O governo precisa publicar mais dados, especialmente na área tributária. Está faltando isso no Brasil”, diz o economista.
Afonso, considerado um dos “pais” da LRF, afirma que o Brasil é um dos países que mais debate política fiscal, mas muitas vezes essa discussão é prejudicada por interesses setoriais em detrimento do conjunto. “É preciso haver uma distribuição mais ampla e equitativa do ônus. Outro vício antigo difícil de se resolver no Brasil é tratar a política fiscal isolada da política monetária, e a política monetária isolada da política cambial, isolada da política comercial, isolada da política social e assim por diante”, aponta.
“Nós não temos política macroeconômica no Brasil. Não temos equipe econômica. O Brasil deve ser o país que mais fala em política fiscal, mas trata a política fiscal como se fosse algo independente do resto. Ela é causa e consequência: afeta as demais políticas e também é afetada por elas.”
Na conversa com a reportagem, o economista também chama atenção para a necessidade de um novo debate sobre a Previdência, diante do rápido envelhecimento da população brasileira e das novas formas de trabalho. “Nós não precisamos de uma nova reforma previdenciária, mas uma reestruturação previdenciária. Precisamos reformar a ideia de reforma”, afirma.
“Quase sempre a ideia de reforma é você mexer nas condições de acesso à aposentadoria, aumentando a idade mínima para se aposentar e o tempo de contribuição exigido. Acontece que metade dos trabalhadores brasileiros hoje não contribui com a Previdência Social. Então, mais tempo ou menos tempo de contribuição é inócuo.”
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Leia os principais trechos da entrevista concedida por José Roberto Afonso ao Metrópoles:
Há 25 anos, foi sancionada a Lei de Responsabilidade Fiscal, pela qual o senhor é um dos maiores responsáveis. Qual é o balanço que se pode fazer desse instrumento até aqui? Qual é o tamanho do avanço institucional para o país?
O avanço foi muito grande em termos de mudança de cultura. Em poucos países do mundo se debate tanto política fiscal e regras fiscais quanto no Brasil. Isso reflete, em grande parte, essa contribuição que a LRF trouxe, no sentido de não ser apenas um regramento legislativo contábil, mas uma mudança cultural. Isso, para mim, é o mais importante.
Em entrevista recente, o senhor mencionou dois pontos da LRF que ainda não saíram do papel: um teto para a dívida pública federal e a criação de um Conselho de Gestão Fiscal. Por que eles são importantes?
Embora passados 25 anos, você tem algumas regras muito importantes da lei que nunca foram regulamentadas. É curioso que nem mesmo aproveitando essa comemoração dos 25 anos não vimos as pessoas se mobilizando, salvo a CAE [Comissão de Assuntos Econômicos] do Senado, que disse que votaria o limite da dívida da União. Mas o governo federal parece não ter maior interesse nisso, nem o atual governo nem o anterior, e muito menos o mercado financeiro, que reclama muito e quer resultado fiscal, mas não fala em limite da dívida. Essa é uma regra que existe no mundo inteiro. No fundo, as pessoas querem restrições de gasto e de renúncia fiscal para os outros, mas não para si. No caso da dívida pública, a preocupação que existe é a de que, em momentos de crise financeira aguda, o governo precisa socorrer o sistema bancário, como já aconteceu em 2008 e na pandemia de Covid, por exemplo. Embora a legislação tenha flexibilidade nesses casos, o que eu sinto é que os credores não querem correr risco. É algo paradoxal: eles reclamam que se deve muito, mas não querem limite da dívida, que é o ponto mais relevante da LRF que falta regulamentar.
E o Conselho de Gestão Fiscal?
O Conselho de Gestão também é muito relevante, menos pela questão fiscal e mais pela questão institucional. O Brasil tem duas características marcantes: é uma federação muito descentralizada, com estados e municípios pesando muito, e de outro lado os demais Poderes para além do Executivo cresceram muito em importância. Nenhum país do mundo fala tanto em Judiciário e no Supremo Tribunal Federal quanto o Brasil. Em nenhum país do mundo que não seja parlamentarista, o Congresso mexe tão livremente no Orçamento. Seria importante você ter os representantes dos estados e municípios, do Judiciário e do Legislativo sentados à mesa junto ao Poder Executivo. Para negociar, conversar, inclusive sobre emenda parlamentar, dívidas de estados e municípios etc. É muito curioso que ninguém queira falar nisso.
Em artigo publicado há 25 anos, e assinado pelo senhor e por , vocês criticavam “a preferência recorrente de se enfrentar crises fiscais e econômicas com sucessivos planos de curto prazo, pacotes tributários e de emergência e programas de cortes prementes de gastos que terminam por estropiar políticas orçamentárias racionais” e afirmavam que “a LRF facilitará o abandono dessa prática, de recorrentes tentativas de tapar buracos, e permitirá a implantação de um novo regime fiscal”. Por que, 25 anos depois, o Brasil continua convivendo com esses “tapa-buracos”?
Na verdade, acho que mudou muito. Antes da LRF, você chegava ao último dia do ano e o governo baixava decretos ou medidas provisórias com pacotes tributários que valiam no dia seguinte. Isso não tem acontecido mais. É claro que agora tivemos um pacote para compensar toda a questão do IOF, tem um debate, mas nada parecido com a situação anterior. Melhorou, mas é óbvio que não se resolveu tudo. Acima de tudo, não temos mais medidas de afogadilho, adotadas de última hora. Há um debate mais aberto, inclusive com resistências do Congresso a medidas anunciadas pelo governo, o que faz parte dessa mudança cultural que mencionei anteriormente. É importante lembrar que a lei trata de instrumentos, de condutas, de regras. Não é a lei que vai resolver a política ou a prática tributária, que mudam ao longo do tempo. Tenho observado um debate pertinente no sentido de se cobrar maior austeridade fiscal, resultados primários positivos e crescentes, dívida decrescente. Ao mesmo tempo, vejo muita gente defendendo medidas na base daquele ditado popular: ‘pimenta nos olhos dos outros é refresco’. Cada um quer algo que vai acabar afetando o outro, mas que não lhe afete.
Como resolver isso?
É preciso haver uma distribuição mais ampla e equitativa do ônus. Outro vício antigo difícil de se resolver no Brasil é tratar a política fiscal isolada da política monetária, e a política monetária isolada da política cambial, isolada da política comercial, isolada da política social e assim por diante. Está valendo a regra de que cada um é dono do seu quadradinho e pronto. Nós não temos política macroeconômica no Brasil. Não temos equipe econômica. O Brasil deve ser o país que mais fala em política fiscal, mas trata a política fiscal como se fosse algo independente do resto. Ela é causa e consequência: afeta as demais políticas e também é afetada por elas. Temos de voltar a ter mais debates macroeconômicos, formulação de política macroeconômica, ter um plano estratégico. E, aí sim, a política fiscal se inserir nesse contexto. Isso, inclusive, não se resolve com lei. Muito disso tem a ver com prática, com cultura.
O ministro da Fazenda, , disse na semana passada que o governo federal vai “congelar o debate sobre aumento de gastos” até que se encontre o caminho da sustentabilidade fiscal. Recentemente, a ministra do Planejamento, , afirmou que, a partir de 2027, o próximo presidente, seja quem for, precisará aprovar um novo arcabouço fiscal se não quiser “detonar a economia”. O senhor acredita no compromisso fiscal do atual governo? O arcabouço ainda está parando de pé?
A questão não é acreditar ou não. Eu acreditar ou os outros acreditarem não é o ponto importante aqui. É preciso ter instrumentos que permitam a definição de metas e objetivos e ajudem a persegui-los. Se você não consegue cumprir o que propôs, é complicado. O arcabouço fiscal é uma lei que vale só para o governo federal, é diferente da LRF. E ela basicamente trata de dívida, enquanto a LRF tem uma abrangência muito maior porque trata de receita, despesa, patrimônio, e envolve União, estados e municípios. Temos de ter arcabouços institucionais por meio dos quais você cobre responsabilidade, seja quando se propõe uma meta ou quando ela tem de ser executada. Quero crer que o governo, independentemente de quem esteja lá, saiba que tem de cumprir a meta ou explicar por que precisa alterar aquela meta. Não vejo maiores dificuldades de se alterar a meta porque o mundo muda e, eventualmente, você precisa mudar. É um erro tratar tudo hermeticamente. O arcabouço é uma lei complementar. O problema é que, no âmbito desta lei complementar, anteciparam metas específicas de sustentabilidade da dívida da União que, na minha opinião, deveriam estar em uma lei ordinária, que muda todo ano. A LRF resolveu isso remetendo à LDO, que é uma lei ordinária. As coisas mudam, você muda. Ora se faz superávit, ora se faz menos superávit ou até déficit. Acho que acabaram deixando o arcabouço muito rígido.
Especialistas têm alertado para a inevitabilidade de uma nova reforma da Previdência, possivelmente já no próximo governo, em meio a uma série de aumentos de benefícios como BPC (Benefício de Prestação Continuada), auxílio-doença, reajuste real do salário mínimo etc. O senhor acredita que essa e outras reformas serão realmente necessárias?
Por princípio, quando se faz uma reforma, você procura contemplar tudo e não espera que uma outra reforma seja necessária. Mas eu não tenho dúvidas de que as circunstâncias mudaram drasticamente. Houve um envelhecimento muito rápido da população brasileira. A gente sabe que o Brasil é um país mais jovem do que a maioria dos países da Europa, mas o Brasil envelheceu mais rápido do que a Europa envelheceu. Daqui a 30 anos, o índice de envelhecimento do Brasil deve ser maior do que a média mundial. Além disso, há a questão da inteligência artificial, que vai impactar o emprego e ninguém sabe ao certo quais serão os efeitos disso. Algo que já está dado é o trabalho independente, uma opção crescente especialmente entre os mais jovens, dos mais pobres aos mais ricos, que não querem mais emprego com carteira assinada – . Esse avanço do trabalho independente no Brasil não tem precedentes no resto do mundo. Isso afeta as contribuições para a Previdência e as condições com que esses trabalhadores vão se aposentar no futuro. Vai do entregador de comida até um programador ou cientista de dados. Nós não precisamos de uma nova reforma previdenciária, mas uma reestruturação previdenciária. Precisamos reformar a ideia de reforma.
Como assim?
Quase sempre a ideia de reforma é você mexer nas condições de acesso à aposentadoria, aumentando a idade mínima para se aposentar e o tempo de contribuição exigido. Acontece que metade dos trabalhadores brasileiros hoje não contribui com a Previdência Social. Então, mais tempo ou menos tempo de contribuição é inócuo. Nós temos de enfrentar esse debate urgentemente. Tudo o que é complexo, complicado, desafiador, as pessoas costumam deixar de lado no Brasil. Se ignorar o problema resolvesse o problema, seria ótimo. Só que o que acaba acontecendo é que o problema cresce cada vez mais.
A Câmara dos Deputados e o Senado , em mais uma derrota do Executivo no Congresso. Está faltando diálogo entre os Poderes?
Como eu sou mais técnico, não vou me aprofundar muito sob o ponto de vista político. Mas acho que sim, tem faltado muito diálogo técnico. Essa discussão do IOF poderia passar pelo Conselho de Gestão Fiscal, por exemplo. Seria uma discussão com base técnica. Por que o governo aumentou o IOF? Tem problema ou não no IOF? Eu, pessoalmente, acho curioso quando dizem que o IOF não pode ser cobrado por muito tempo, mas isso só confirma que brasileiro não tem memória. No mesmo dia em que a CPMF [Contribuição Provisória sobre Movimentação Financeira] deixou de ser cobrada, no segundo mandato do presidente Lula [em 2007], o governo aumentou o IOF. Em toda e qualquer base sobre a qual antes incidia CPMF e também IOF, a alíquota do IOF passou a ser de 0,38%, que era a alíquota da CPMF. Pelo que eu me lembro da época, ninguém disse que o governo não poderia fazer isso, ninguém foi à Justiça e o Congresso e o Judiciário não falaram nada. Do ponto de vista técnico, acho que precisaria haver mais debate entre os economistas e entre os juristas. No caso da LRF, nós sentamos com os estados e municípios, negociamos o projeto artigo por artigo, e muito do que está na lei nós, que éramos técnicos do governo, nem tínhamos ideia, nem tínhamos pensado naquilo. Foram sugestões que os outros governos trouxeram. Quando chegou ao Congresso, foi a mesma coisa, principalmente na Câmara dos Deputados. Acrescentou muita coisa à lei, melhorou a redação, incluiu regras importantes etc. Precisamos valorizar mais a democracia e o debate técnico, desde que ele seja feito com ordem, serenidade e, sobretudo, com dados. O governo precisa publicar mais dados, especialmente na área tributária. Está faltando isso no Brasil. Nós já fomos bem-sucedidos e tenho certeza de que podemos ser novamente. Temos um Congresso e um Judiciário muito atuantes. Temos todas as condições de encontrar as saídas.
Por: Metrópoles