• Segunda-feira, 17 de março de 2025

Zeina Latif: “Haddad ficou enfraquecido porque errou na estratégia”

Ao Metrópoles, economista afirma que arcabouço fiscal "não cumpriu seu papel" e diz que Brasil precisa de reformas e agenda "mais ambiciosa"

O ministro da Fazenda, , está enfraquecido após mais de 2 anos no cargo. Mas, ao contrário do que afirmam analistas e grande parte dos agentes de mercado, isso não tem relação com a escolha de – considerada sua antípoda no PT – para ocupar um dos ministérios do governo do presidente Luiz Inácio da Silva, mas com erros cometidos pelo próprio chefe da equipe econômica. A avaliação é da economista Zeina Latif, ex-secretária de Desenvolvimento Econômico de São Paulo, em entrevista ao Metrópoles. Para Zeina, Haddad “errou na sua estratégia” e demorou demais para reconhecer a importância crucial do corte de despesas para o equilíbrio fiscal do país, para além do aumento de receitas. “Era uma agenda para começar já no início do governo”, diz a economista. “Aquele pacote do ano passado deveria ter entrado em mais frentes, embora eu entenda que a visão do mercado em relação ao pacote tenha sido excessivamente pessimista e mal-humorada. A falha, ao meu ver, foi que veio muito tarde”, afirma. “Ele [Haddad] não deu a devida ênfase para a questão da despesa. Ao haver essa deterioração de preços do mercado, possivelmente isso o enfraqueceu junto ao presidente”, prossegue Zeina. “O partido [PT] ter dificuldade com a agenda de gastos, eu até entendo, mas você tem que ter um ministro que consiga segurar o touro e preservar a confiança.” Segundo a economista, a influência de Gleisi sobre o presidente da República foi potencializada pelo mercado, . “Eu não acredito que haja esse simbolismo todo na indicação dela e que isso seja capaz de enfraquecer tanto o Haddad. Não vejo dessa forma, até porque a palavra final é do Lula. No final, a Gleisi concordando ou não, é o presidente quem toma a decisão”, observa. Na conversa com a reportagem do Metrópoles, Zeina Latif também faz críticas ao arcabouço fiscal e afirma que o país precisa retomar a agenda de reformas estruturais que ganhou tração a partir de 2016. “O arcabouço fiscal não cumpriu o seu papel, nem no sentido de entregar os resultados de curto prazo, muito menos no de permitir, no médio e longo prazo, condições para o equilíbrio das contas públicas. O próximo presidente certamente terá de adotar um outro regime fiscal”, projeta. Leia os principais trechos da entrevista concedida por Zeina Latif ao Metrópoles: Após mais de 2 anos de governo Lula, por que os sinais emitidos em relação à economia vêm despertando tanta preocupação no mercado? A grande questão é a gestão da política fiscal. O crescimento esperado da dívida pública é forte e há questões fiscais mais estruturais que vêm em tendência de piora. Está bastante claro que precisamos voltar a ter reformas, e o governo foi em direção contrária, em vez de dar prosseguimento à agenda de reformas fiscais. O fato é que tivemos retrocessos no atual governo, que começam já na PEC da Transição [] – não pela PEC em si, que era necessária, porque aquele Orçamento não era mesmo viável. De lá para cá, tivemos várias decisões equivocadas e até retrocessos institucionais. Em vez de reformar a regra do teto de gastos, vieram com outra regra, que tinha muitos problemas de inconsistências internas. As contas não fecham com as metas fiscais e ainda surgem camadas adicionais de preocupação. A regra do salário mínimo, a volta da vinculação de saúde e educação, o uso de fundos públicos e privados, despesas fora do Orçamento como o e o Vale Gás… Foram retrocessos na agenda de contenção de gastos. Ainda que algumas decisões tenham ido na direção correta, colocou-se um peso muito grande no aumento da arrecadação, justamente no momento em que se estava aprovando a reforma tributária. Isso gerou muita incerteza para os agentes econômicos. É claro que houve ainda uma retórica muito ruim sobre o Banco Central, o que cobra seu preço com as expectativas desancoradas de inflação. Mas o maior problema, realmente, foi a falta de horizonte em relação ao ajuste das contas públicas. Você tem chamado atenção para uma “bomba fiscal” que vem se formando, envolvendo as despesas obrigatórias da União. Segundo estimativas do Tesouro, elas devem ter um crescimento real médio de 3% ao ano até 2034. O arcabouço fiscal ainda está se sustentando ou corre risco de não parar de pé? Logo de cara, o arcabouço não funcionou. Em 2023, quando o Haddad anunciou o arcabouço, ele anunciou também metas de resultado primário. Já no primeiro ano, a meta de 2023 foi ignorada e nada se falou a respeito. , mas se valendo de expedientes que levassem a esse cumprimento. Em 2023, foi feita uma antecipação de despesas e, ao mesmo tempo, jogaram algumas receitas para frente, justamente para cumprirem em 2024. . A regra do arcabouço não funcionou desde o início e, para piorar, não trouxe confiança para os agentes econômicos. Estamos falando de um governo que implementou uma nova regra, tomou decisões inconsistentes com o arcabouço e, portanto, não trouxe previsibilidade à economia. O regime fiscal do país, que é a forma como as regras são estabelecidas e a confiança de que elas podem levar à estabilização da dívida pública como proporção do PIB, não conseguiu atingir esse objetivo. O arcabouço fiscal não cumpriu o seu papel, nem no sentido de entregar os resultados de curto prazo, muito menos no de permitir, no médio e longo prazo, condições para o equilíbrio das contas públicas. O próximo presidente certamente terá de adotar um outro regime fiscal. O governo e deve enviar nesta semana ao Congresso . Como você avalia essas medidas, em um momento no qual o equilíbrio das contas públicas parece ser o grande calcanhar de Aquiles do governo? Eu até vejo méritos em pensar em alguma coisa nesse sentido, mas são medidas que partem de diagnósticos falhos, começando pela tabela do IR. O que a gente tem hoje de isenção de IR não é um valor baixo em relação à experiência mundial. Do ponto de vista distributivo, não faz sentido elevar essa isenção. Em segundo lugar, não é algo que beneficie os pobres. Haveria outras coisas que, ao meu ver, são prioritárias para ter maior justiça tributária e que não estão sendo tocadas, como rever as muitas renúncias ou regras de tributação que acabam beneficiando pessoas mais ricas. Há outras injustiças que precisavam ser atacadas. A terceira questão é a fonte de recursos. Uma isenção como essa, de R$ 25 bilhões, é muito difícil de ser viabilizada. Como pagar essa conta? Essa forma de pagar a conta também não pode trazer distorções. Enfim, há coisas que são meritórias, pelo menos no discurso de aumentar a justiça tributária. Mas o caminho de começar pela isenção do IR foi equivocado. E o timing foi errado também, um momento no qual a agenda deveria ser de contenção de despesas. A inflação em fevereiro avançou para 1,31%, . No acumulado de 12 meses, o IPCA ficou em 5,06%, acima do teto da meta. Os brasileiros terão de conviver com inflação alta por muito tempo? A gente vai depender da sorte, até porque os efeitos da política monetária demoram para se materializar. São muitos ventos contrários que indicam que é cedo para dizer que o pior da inflação já passou. Há até uma expectativa de começarmos a ter, mais adiante, certo alívio nos preços do atacado, mas não é algo para já. E tem essa dinâmica da inflação de serviços, que tem piorado. É um quadro de descontrole, que pode levar o país para uma situação muito extrema de inflação? Não, não vejo dessa forma. O que temos é uma conjunção de fatores com todos os vetores apontando para uma inflação mais resistente. Não é um descontrole, mas um quadro bastante desconfortável. [de 3% em 2025] talvez seja baixa demais neste momento? Talvez seja. Pessoalmente, acho que, quando o BC começou a fazer aquela escadinha de redução da meta, a velocidade foi muito rápida, principalmente naquele período pós-pandemia. Era o momento de esperar. É claro que, uma vez que está lá, não vale a pena mudar a meta. O custo é muito alto. Se mudar a meta em um quadro de desconfiança como agora, na hora as expectativas inflacionárias vão subir junto. De qualquer forma, quando vejo o governo preocupado com a inflação, ainda que muitas vezes as medidas sejam equivocadas, já encaro como um sinal positivo. Se pensarmos no governo anterior do PT, da Dilma [Rousseff], a inflação subia e isso não trazia preocupação. O governo negava o problema. Está ruim agora, mas não acho que tenhamos um quadro muito preocupante pela frente, até porque, bem ou mal, temos uma classe política que entendeu que inflação machuca a aprovação de qualquer governo. em 2023 e 2024, mas há . Por que o país não consegue superar esses “voos de galinha” na economia? Em 2023 e em parte de 2024, tivemos, sem dúvida, um efeito artificial de impulso fiscal. Em 2023, tivemos todo o efeito da PEC da Transição. Depois, 2024 já começou com o pagamento dos precatórios. Mesmo que você não tenha adicionalmente despesas no mesmo ritmo, estamos falando de desacelerar, mas sobre uma base bem elevada. Então, tem muito impulso fiscal na economia. Todo mundo celebra, o setor produtivo celebra, mas não há como sustentar isso. Isso se sustenta enquanto tem ociosidade na economia. Mas, na hora em que o BC tem de puxar a taxa de juros e o mercado espera taxas de juros tão elevadas, está claro que aquela estratégia deu errado. Na época do governo Dilma, demorou muito para o mercado compreender que havia problemas na política econômica. O fato de hoje haver uma reação da sociedade, a ponto de a aprovação do presidente cair e de os preços de ativos piorarem, é um freio para cenários extremos – este é um ponto positivo. A sociedade, hoje, não aceita o descontrole. A sensibilidade a esse artificialismo está maior, o que significa que temos um governo com a confiança muito abalada. Tem artificialismo fiscal no PIB, mas a ideia de colocar um freio veio mais cedo do que em outras ocasiões porque existe uma crise de confiança no atual governo. E aí pressiona dólar, inflação, curva de juros, e isso tem um efeito rebote na própria economia. Dito tudo isso, eu acho que tivemos uma melhora no potencial de crescimento do país. O FMI projeta 2,5%, acho que é um número razoável de potencial, o que significa que a política monetária vai desacelerar a economia, mas não acredito que estejamos indo para um quadro recessivo. Recessão não é o nosso histórico. Política monetária não tem essa força toda, nem é para ter. Quando tivemos recessão no Brasil, havia outra crise junto, não era só a Selic alta. Ou era crise global, ou a pandemia, ou a própria crise política do governo Dilma, que fez despencarem os investimentos. Ainda que com muita volatilidade, tivemos recentemente uma recuperação do investimento, o mercado de trabalho está surpreendendo, é uma economia que tem exibido uma reação mais sincronizada entre os setores e as regiões do país… Não é tudo voo de galinha, não. Tivemos alguns ganhos. Mas por que o Brasil não consegue atingir um crescimento mais robusto e sustentável da economia? O que é complicado é que vamos perdendo oportunidades de ter uma agenda mais ambiciosa e, portanto, perdendo a chance de um potencial de crescimento mais forte. Era para estarmos discutindo outro tipo de agenda estrutural, mesmo que os ganhos não fossem para o curto prazo. Agora, lamentavelmente, a segunda metade dos mandatos presidenciais no Brasil historicamente é mais difícil. E, quando o presidente está fraco, mais ainda. Com presidente fraco, fica muito mais cara a aprovação de reformas. Qual é a sua avaliação sobre o desempenho do ministro Fernando Haddad? A forma como foi deixada de lado a agenda de contenção de gastos foi um equívoco. Era uma agenda para começar já no início do governo. Tem coisa que foi na direção correta, mas, em geral, tivemos uma agenda econômica muito pobre, por colocar tanto foco na arrecadação e não no corte de despesas. deveria ter entrado em mais frentes, embora eu entenda que a visão do mercado em relação ao pacote tenha sido excessivamente pessimista e mal-humorada. A falha, ao meu ver, foi que veio muito tarde. Já tinha muito diagnóstico claro no Brasil e dentro da máquina pública de que muitas das políticas públicas que temos hoje precisavam ser arrumadas. Demorou muito e tinha de mexer em mais coisas. Partiram de diagnósticos errados e introduziram essa agenda de forma muito atrasada. De qualquer forma, temos de analisar o governo como um todo. Por mais que eu identifique esses problemas, o fato é que a gente viu dificuldades em várias áreas, que acabam desembocando na economia. Tem coisas que transbordam, não é só o Ministério da Fazenda. A escolha de Gleisi Hoffmann para a Secretaria de Relações Institucionais pode enfraquecer Haddad? A minha leitura é a de que o ministro Haddad ficou enfraquecido porque ele errou na sua estratégia. Ele não deu a devida ênfase para a questão da despesa. Ao haver essa deterioração de preços do mercado, possivelmente isso o enfraqueceu junto ao presidente. O partido [PT] ter dificuldade com a agenda de gastos, eu até entendo, mas você tem que ter um ministro que consiga segurar o touro e preservar a confiança. Essa discussão de contenção de despesas só apareceu no discurso do Haddad em outubro do ano passado. Antes tarde do que nunca, mas demorou muito! Se o Ministério da Fazenda teve um erro de diagnóstico e esse erro gerou piora das expectativas do mercado, é claro que a credibilidade do ministro junto ao presidente é outra. Foi um pouco diferente, mas, de alguma forma, isso aconteceu também com o Paulo Guedes [ministro da Economia no governo de Jair Bolsonaro]. Ele passou uma imagem de que era fácil consertar o Brasil e fazer reformas. Até o momento em que o presidente [Bolsonaro] não quis mais ouvir essa história. Podem até existir outros elementos que enfraqueceram o ministro Haddad, mas há uma questão central: ele não conseguiu partir dos diagnósticos corretos e, a partir daí, convencer sobre a necessidade de ajuste de despesa. Quando o fez, fez tardiamente. Sobre a Gleisi, eu não acredito que haja e que isso seja capaz de enfraquecer tanto o Haddad. Não vejo dessa forma, até porque a palavra final é do Lula. No final, a Gleisi concordando ou não, é o presidente quem toma a decisão. A divergência faz parte de qualquer governo. Isso acontecia entre os ministros da Fazenda e do Planejamento do primeiro governo FHC [Pedro Malan e José Serra, respectivamente]. Sempre acontece. Não vejo a luta política interna como o fator principal para a perda de credibilidade do ministro da Fazenda. , você disse que o governo Lula era uma “usina de ruídos” na economia e que o presidente parecia governar “com o fígado”, com os ataques sistemáticos ao Banco Central. Esses ruídos aumentaram ou diminuíram de lá para cá? No fim das contas, tenho a impressão de que o ruído acabou diminuindo, mas só porque ficou claro que o governo foi perdendo cada vez mais apoio e confiança, foi se enfraquecendo. Quando o governo fala em melhorar a comunicação, ele reconhece que a aprovação do presidente está negativa em termos líquidos. Continuo achando que é difícil encontrar uma coisa mais estruturada neste governo. Você tem alguns ministérios mais arrumados, como o dos Transportes, e algumas coisas que vão melhorando, mas é pouco. No geral, não conseguimos enxergar uma agenda mais concreta e estruturada. O fato de ter reduzido o ruído não significa grande coisa, considerando todo esse contexto.
Por: Metrópoles

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