• Domingo, 19 de outubro de 2025

“Fogo amigo”: Ausência total de queimadas ameaça a biodiversidade do Cerrado

Pesquisadores da Unesp revelam que a política de fogo zero ameaça o Cerrado ao eliminar espécies nativas e favorecer o avanço de florestas. Nova política nacional quer reverter o quadro com queimadas controladas.

Pesquisadores apontam que a ausência total de queimadas ameaça a biodiversidade do segundo maior bioma brasileiro e favorece o avanço indesejado de florestas sobre áreas abertas A proibição total do uso do fogo como ferramenta de manejo ambiental, conhecida como política de “fogo zero”, tem gerado um efeito colateral preocupante no Cerrado brasileiro. Estudos conduzidos por pesquisadores da Unesp revelam que a estratégia, embora bem-intencionada, está alterando profundamente a paisagem e o equilíbrio ecológico do bioma, comprometendo a sobrevivência de espécies adaptadas às áreas abertas e ensolaradas características das savanas tropicais. O Cerrado e sua relação ancestral com o fogo Ocorrendo em 25% do território nacional e presente em todas as regiões do país, o Cerrado é uma savana tropical que, ao longo de milhões de anos, evoluiu sob influência direta do fogo. Incêndios naturais causados por raios, especialmente no início da estação chuvosa, desempenharam papel vital na manutenção do equilíbrio do ecossistema — limpando o solo, controlando o acúmulo de matéria orgânica e favorecendo o rebrote da vegetação nativa.
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    Historicamente, comunidades indígenas e tradicionais entenderam esse processo e adotaram queimadas controladas como instrumento de manejo sustentável, tanto para fins agrícolas quanto para estimular a regeneração de espécies vegetais. O problema começou com a imposição legal da proibição do fogo, desde as Ordenações Filipinas de 1603 até normas mais recentes, como o Decreto nº 2.661/98, que baniu queimadas em unidades de conservação. window._taboola = window._taboola || []; _taboola.push({mode:'thumbnails-mid', container:'taboola-mid-article-thumbnails', placement:'Mid Article Thumbnails', target_type: 'mix'});As consequências do “fogo zero” no Cerrado Nas últimas décadas, a supressão completa do fogo levou ao adensamento da vegetação: árvores passaram a dominar regiões antes ocupadas por gramíneas e arbustos. Isso provocou sombras intensas e acúmulo de serrapilheira, dificultando a regeneração de espécies nativas adaptadas à alta luminosidade e solos limpos. Pesquisadores da Unesp, como os professores Davi Rossatto (Jaboticabal) e Rosana Kolb (Assis), investigam há dez anos os impactos dessas mudanças. Em experimentos realizados na Estação Ecológica de Assis — área sem queimadas há mais de 60 anos — o grupo comprovou que plantas típicas de áreas abertas sofrem com redução de luz e barreiras físicas à germinação, causadas pelas folhas e galhos acumulados no solo. Adaptação fisiológica não garante sobrevivência Simulações de diferentes cenários de sombreamento e serrapilheira mostraram que, após dois anos e meio, muitas plantas tentaram se adaptar, desenvolvendo folhas maiores, mais finas e com maior concentração de pigmentos. Essas alterações são estratégias para absorver melhor a luz em ambientes escurecidos, mas não bastam. A doutora Rosana Kolb alerta: “ Essas adaptações não garantem a manutenção da fotossíntese em níveis ideais. As plantas esgotam suas reservas energéticas e acabam desaparecendo”. Em parcelas experimentais, houve perda de até 51% na diversidade de espécies, com desaparecimento completo de gramíneas e arbustos em áreas com sombra intensa e serrapilheira. Política pública e ciência: um novo caminho A principal causa do adensamento, segundo os especialistas, são as políticas de fogo zero aplicadas sem considerar as particularidades ecológicas do Cerrado. Ao contrário da floresta amazônica, o Cerrado é um sistema mantido pela presença periódica do fogo. Unidades de conservação próximas a biomas florestais são especialmente vulneráveis ao adensamento. Diante desse cenário, foi sancionada em 2024 a Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo (PMIF) pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Inspirada em experiências bem-sucedidas em unidades de conservação do Tocantins, a nova política reconhece o uso do fogo controlado como ferramenta essencial de conservação. As queimadas prescritas serão de baixa intensidade, planejadas de acordo com o ciclo do bioma e com distribuição estratégica para estimular a regeneração sem provocar grandes danos. O que está em jogo A pesquisa revela um alerta claro: as políticas ambientais precisam ser baseadas em conhecimento científico e respeito aos processos naturais de cada ecossistema. No Cerrado, o fogo é um aliado, não um inimigo. Proibir totalmente seu uso significa colocar em risco espécies adaptadas a ambientes abertos, reduzir a biodiversidade e alterar de forma irreversível a paisagem do bioma. Como resume Rossatto, “as leis de fogo zero não seguiram o que conhecemos e estudamos cientificamente, e causaram problemas enormes, difíceis de reverter”. A expectativa, agora, é que a PMIF marque o início de uma nova era, na qual a conservação caminhe junto com o conhecimento acumulado ao longo de séculos — tanto pela ciência quanto pelos saberes tradicionais. Crédito: Evaldo Resende / Pedro Firme da Cruz Júnior.
    Por: Redação

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