Próximo de completar a marca de 100 dias de governo, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (Partido Republicano), pauta a política interna de seu 2º mandato em mudanças dráticas em setores essenciais.
A USaid, maior órgão de ajuda humanitária global, foi fechada. O Departamento de Educação é o próximo. E o de Saúde sofre com a demissão de dezenas de milhares de funcionários. Relembre as decisões:
O governo norte-americano oficializou em 28 de março o fim da USaid (Agência de Desenvolvimento Internacional), responsável por administrar a ajuda externa do país desde 1961. A decisão foi confirmada por notificação formal ao Congresso.
A Casa Branca também comunicou o Legislativo que pretende realinhar (ou transferir) algumas das funções da agência para o Departamento de Estado (equivalente ao Ministério das Relações Exteriores no Brasil) até 1º de julho. As funções da agência que não forem compatíveis com os planos e prioridades do governo atual serão encerradas.
Segundo o secretário de Estado, Marco Rubio, “a USaid se desviou de sua missão original há muito tempo”. Rubio afirmou ainda que “como resultado, os ganhos foram muito poucos e os custos, muito altos. Graças ao presidente Trump, esta era equivocada e fiscalmente irresponsável acabou”, concluiu.
A USaid, fundada durante a Guerra Fria pelo então presidente John F. Kennedy (1961-1963), ficou encarregada ao longo das últimas décadas de distribuir a maioria da ajuda externa norte-americana, seguindo as políticas do Departamento de Estado do país. Até a chegada de Trump à Casa Branca em 20 de janeiro de 2025, a agência atuava em mais de 100 países.
Nos anos 1960, 1970 e 1980, a USaid era chamada no Brasil pelas esquerdas de “agente do imperialismo norte-americano”. O dinheiro era usado basicamente em países latino-americanos para disseminar os valores da política externa dos EUA. Nessas décadas, o governo norte-amricano tinha forte atuação no chamado “Terceiro Mundo” para combater o que considerava ser o avanço do comunismo.
A partir de meados dos anos 1990 e ao longo dos 2000, a Usaid passou a ter outro tipo de atuação em países pobres. A agência começou a dar assistência para organizações não governamentais que defendem causas ligadas aos direitos humanos, pró-meio ambiente e a favor das minorias. Por essa razão, a USaid que no passado era vista como uma entidade de direita e imperialista, passou a ser apreciada pelas esquerdas.
No 1º mandato de Donald Trump (2017-2021), por exemplo, a USaid repassou ao Brasil US$ 82.864.757,00 (aproximadamente R$ 414 milhões). O valor é US$ 28,8 milhões inferior ao enviado pelo governo do democrata Joe Biden (2021-2024), que repassou US$ 111.709.074,00 (aproximadamente R$ 559 milhões). A maior parte da verba foi destinada a projetos de contenção da pandemia de covid-19, iniciada em março de 2020.
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Cinco anos depois, no início do seu 2º mandato, a USaid ganhou destaque depois que Trump congelou o envio da ajuda externa. Nas semanas seguintes, a gestão do republicano fechou os escritórios da agência e tirou seu site do ar.
A justificativa do líder da Casa Branca é a de que “a indústria de ajuda externa e a burocracia dos Estados Unidos não estão alinhadas com os interesses norte-americanos e, em muitos casos, são antitéticas aos valores norte-americanos”. Disse também que órgãos como a USaid “servem para desestabilizar a paz mundial”.
Segundo Gustavo Poggio, professor de relações internacionais na Berea College, em Kentucky, nos EUA, essa fala de Trump se dá pelo que ele interpreta como a política do “America First” (em tradução livre, América Primeiro). Qualquer tipo de gasto direcionado a outros países, diz Poggio, é visto pelo republicano como um desperdício de dinheiro.
“Trump enxerga as relações internacionais como um jogo de soma zero. Então, se alguém está ganhando, alguém tem que necessariamente perder”, disse o professor em entrevista ao Poder360.
Poggio também afirma que o fim da USaid impacta diretamente na política externa norte-americana porque “os países vão se tornar mais resistentes a cooperar com os EUA”.
Desde o início do seu 2º mandato, Trump tem promovido um amplo desmonte no Departamento de Educação. Logo nos primeiros dias, ele assinou o decreto 14.151, que extingue programas DEI (Diversidade, Equidade e Inclusão) e em seguida, o decreto 14.190, que proíbe o ensino de conteúdos relacionados à teoria crítica de raça e identidade de gênero em escolas públicas.
Em 20 de março, a secretária de Educação, Linda McMahon, recebeu a ordem para iniciar o processo de extinção do departamento. A medida visa a reduzir os gastos do governo federal, transferindo as funções para os estados.
Durante a assinatura do decreto, Trump afirmou: “Por mais de 45 anos, os Estados Unidos gastaram mais dinheiro com educação do que qualquer outro país, […], mas ainda assim, estamos no fim da lista em termos de sucesso”. Segundo o republicano, encerrar o órgão melhoraria “drasticamente” a implementação de novos programas educacionais.
No entanto, o corte na pasta interfere no financiamento do Estado a programas de educação atuais, como:
Trump argumenta que a descentralização incentivará a melhoria da educação local. “Se você devolver a educação para os 50 [Estados], alguns não vão se sair bem. Mas eles serão forçados a melhorar, porque a situação ficará bem complicada”.
Um dia depois de assinar o decreto, em 21 de março, o governo iniciou a demissão de quase metade dos funcionários da pasta, afetando setores essenciais como os de direitos civil e auxílio estudantil.
“As demissões refletem o compromisso do Departamento de Educação com a eficiência, a responsabilidade e a garantia de que os recursos sejam direcionados para onde são mais necessários: alunos, pais e professores”, justificou McMahon. O número de funcionários caiu de 4.133 para 2.183. Todas as divisões foram afetadas, e algumas, segundo o governo, “precisam passar por uma reorganização significativa”.
Os cortes também atingiram as universidades públicas do país. “Muitos estudantes perderam bolsa e financiamento, e estão com medo de perder financiamentos futuros”, afirmou o professor Gustavo Poggio ao Poder360.
Entre os cortes mais expressivos estão:
O governo Trump também tem pressionado por mudanças no processo de admissão e na grade curricular das universidades. O republicano defende uma reestruturação do corpo docente universitário.
Em 22 de abril, 250 instituições de ensino do país assinaram uma carta condenando a “interferência política” de Trump na educação.
Segundo a emissora norte-americana ABC News, o governo ainda propõe transferir programas federais, como os empréstimos estudantis, para a SBA (Administração de Pequenas Empresas), e as iniciativas voltadas as necessidades especiais para o HHS (Departamento de Saúde e Serviços Humanos).
O Departamento de Saúde dos Estados Unidos, chefiado por Robert F. Kennedy Jr., é um dos mais afetados pelas mudanças de Trump. Com o slogan “make america healthy again” (ou, em tradução livre, “façam os Estados Unidos saudáveis novamente”), o Departamento de Saúde e Serviços Humanos (equivalente ao Ministério da Saúde no Brasil) reestrutura equipes e corta recursos.
Para Poggio, esse slogan é vazio e não significa nada. Segundo ele, “o que tem sido economizado de gastos no geral é um uma gota no meio do oceano”. E completa: “Está se criando uma série de problemas para ter um resultado contábil que é irrelevante“.
Em nota oficial de março de 2025, o departamento anunciou que reduziria de 82.000 para 62.000 funcionários com o objetivo de tornar a organização mais “responsiva e eficiente“. Os prejuízos dos desmontes se concentram no CDC (Centros de Controle e Prevenção de Doenças), na FDA (Administração de Alimentos e Medicamentos) e nos NIH (Institutos Nacionais de Saúde).
No comunicado, o departamento compartilhou que as mudanças “não afetarão os serviços do Medicare e do Medicaid”, programas de saúde com foco em pessoas mais velhas, com deficiência e de baixa renda. Em 19 de abril, Trump reforçou que os auxílios não sofrerão cortes.
Segundo o professor, que é também cidadão norte-americano, as medidas ainda demorarão um tempo para serem percebidas pela população, porém há preocupação.
“A grande questão do Departamento de Saúde é verificar se empresas de alimentos seguem alguns padrões específicos. Cortando gastos, pode ter uma diminuição da verificação, o que vai tornar a alimentação do norte-americano ainda pior”, afirmou.
A escolha do presidente para que RFK Jr. fosse o secretário de Saúde do seu 2º mandato foi motivo de preocupação desde o início por causa dos posicionamentos polêmicos do sobrinho de John Kennedy. Em publicação no seu perfil do X (ex-Twitter), Trump disse que ele foi escolhido para “garantir que todos estejam protegidos dos produtos químicos nocivos, dos poluentes, dos pesticidas, dos produtos farmacêuticos e dos aditivos alimentares que contribuíram para a avassaladora crise de saúde neste país“.
Durante sua sabatina no Senado, Kennedy Jr. afirmou que faria “de tudo para implementar as ideias de Donald Trump”. Ele é conhecido por teorizar conspirações anti vacinas e espalhar falsas notícias sobre o tema. Em seus discursos, o secretário chama as vacinas de perigosas, afirma que os riscos superam os benefícios e questiona os testes de segurança. Em entrevista a jornalistas norte-americanos, ele disse que acredita que “o autismo vem das vacinas”.
Recentemente, já no posto de secretário, RFK Jr. prometeu que seu departamento identificaria, até setembro deste ano, a causa do TEA (transtorno do espectro autista). De acordo com as suas suspeitas, há um “tóxico ambiental” responsável pelo aumento dos diagnósticos da doença.
O projeto foi criticado pela Autism Society of America. De acordo com a diretora de marketing da instituição, Kristyn Roth, “enquanto mais pesquisas são necessárias, não houve qualquer menção a apoiar essa comunidade com inclusão, acolhimento e serviços que reflitam sua diversidade”. Para ela, o compromisso do secretário em “encontrar uma causa definitiva para o autismo é prejudicial à comunidade”.
Antes de ser secretário, Kennedy Jr. se candidatou à Presidência dos EUA com foco em pautas de saúde, mas suspendeu a campanha em agosto depois de conversar com Trump e o apoiá-lo, em troca de um cargo no governo. RFK Jr é filho do ex-secratário de Justiça e candidato à Casa Branca Robert F. Kennedy (1925-1968) e sobrinho do ex-presidente democrata John F. Kennedy (1917-1963), mas sua carreira política não tem o apoio da família. No X, Kerry Kennedy disse que a posição do irmão representa uma “traição” aos “valores” que os Kennedys sempre defenderam.
Segundo Poggio, apesar de existir um debate válido sobre otimizar gastos e burocracia, a forma “nuclear” como Trump procede gera problemas significativos.
Ainda, de acordo com o professor, as economias são mínimas diante dos riscos criados —diminuição da fiscalização sanitária, a potencial perda de liderança em pesquisa e o enfraquecimento do soft power norte-americano. A motivação de Trump é a percepção de que a burocracia estatal é um “entrave para os seus planos de poder“.
Este post foi produzido pela estagiária de jornalismo Nathallie Lopes e pela trainee Letícia Linhares sob a supervisão do editor Ighor Nóbrega.