A ONU (Organização das Nações Unidas) completa 80 anos nesta 6ª feira (24.out.2025). Fundada em 1945, a organização foi criada depois da 2ª Guerra Mundial para prevenir que conflitos em grande escala acontecessem novamente. O aniversário se dá em um contexto de crise climática e conflitos armados ao redor do mundo. Atualmente, a instituição sofre crises políticas e financeiras, que reacendem o debate sobre reforma em seu Conselho de Segurança. Especialistas ouvidas pelo Poder360 afirmam que a ONU continua indispensável.
Diante da guerra na Ucrânia, maior conflito armado em solo europeu desde 1945, que já dura mais de 3 anos, o papel da ONU tem sido questionado. “Neste mundo fragmentado de hoje, que tem cada vez mais conflitos muito difusos, a diplomacia tem sido testada constantemente e não necessariamente a ONU tem sido capaz de responder a isso”, diz Ligia Costa, professora da FGV (Fundação Getulio Vargas).
Para contornar esse cenário, a professora defende uma reforma no Conselho de Segurança, composto, atualmente, por 15 países, sendo 5 permanentes, com poder de veto: China, Estados Unidos, França, Reino Unido e Rússia. Isso significa que o voto negativo de um desses países impede a aprovação de medidas e, consequentemente, paralisa a tomada de decisões. “A ONU tem dificuldade em agir justamente quando mais se espera dela, porque ela é bloqueada pelo próprio conselho”, diz Costa.
Para Costa, “o Conselho de Segurança não representa mais o equilíbrio geopolítico do século 21” e é preciso rever o funcionamento atual “para tentar responder às preocupações do mundo de hoje”.
Em 2022, a Rússia vetou a resolução do Conselho de Segurança que condenava a invasão na Ucrânia. O veto da Rússia bloqueou resoluções mais firmes da ONU sobre a guerra. “Isso faz com que a própria crença da comunidade internacional no poder da ONU seja diminuída”, afirma a professora.
A ampliação do conselho, com uma igualdade maior entre os países, depende da vontade política dos 5 países de abrir mão do seu poder, o que Cristina Pecequilo, professora de política internacional na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), considera ser improvável. “A janela para isso teria sido alguns anos atrás, quando a Guerra Fria acabou. Isso já daria para a instituição um novo vigor e não foi feito”. Pecequilo também afirma que “existe também uma necessidade de que todos os Estados sejam ouvidos, principalmente as nações emergentes”.
Costa diz que “completar 80 anos é uma conquista histórica”. Em sua visão, a ONU “continua sendo indispensável”. Além de seu papel em monitorar crimes de guerra e garantir os direitos humanos, a organização também tem agências humanitárias importantes, como o Programa Mundial de Alimentação, estabelecido em 1963, com o objetivo de promover a segurança alimentar, a Acnur (Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados), criado em 1950 para promover assistência a refugiados em zonas de guerra, e a UNODC (Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes) que implementou a Convenção Anticorrupção a nível global.
“Todo mundo vê a ONU com as mãos atadas em conflitos, mas muitas vezes se esquecem de outras agências que pertencem à ONU e que são de fundamental importância e fazem, na medida do possível, um bom trabalho”, declara.
Para Costa, “apesar das grandes falhas, a ONU continua sendo o único espaço onde 193 países podem se sentar, tentar dialogar e praticar diplomacia“. Na comemoração de seus 80 anos, a professora diz que a ONU é “insubstituível” e “tem o desafio de se reinventar”.
“O mundo antes da ONU era pior. A gente tem que se perguntar se a gente realmente quer um mundo sem as Nações Unidas”, diz Pecequilo. “Se não der para reformar o antigo, talvez criar novas instituições, como já estão sendo criadas para tentar dar conta desses novos desafios da multipolaridade”. A professora também diz ser preocupante este momento de “definhamento e ataque que as Nações Unidas vem sofrendo”.
Costa enfatiza que a organização conseguiu cumprir seu objetivo principal: “Não vivemos a 3ª Guerra Mundial”. Além disso, ela lembra que “foram 80 anos trabalhando com países extremamente diferentes, tentando harmonizar e uniformizar o que é possível em temas como violações aos direitos humanos”.
A ONU declarou, em setembro, que vai reduzir mais de US$ 500 milhões de seu orçamento para 2026 e cortar mais de 20% de sua equipe de funcionários. Os cortes são resultado da diminuição do financiamento dos Estados Unidos, que corresponde a cerca de 25% do orçamento total. O país deve mais de 1 bilhão para o departamento de manutenção de paz e concordou em pagar pouco mais da metade, US$ 682 milhões, neste ano.
Erika Kubik, professora da pós-graduação de Estudos Estratégicos da Segurança e da Defesa na UFF (Universidade Federal Fluminense), diz que “o não pagamento dos Estados Unidos não significa crise americana, mas sim boicote. O percentual da ONU é ínfimo em relação ao investimento militar que os Estados Unidos fazem na sua própria indústria de guerra”.
Donald Trump (Partido Republicano), presidente dos EUA, tem promovido sua política American First (em português, América 1º) e se afastado de instituições globais que não seguem os seus interesses.
Em 2019, Trump impediu a renovação do mandato de dois juízes para o tribunal da OMC (Organização Mundial de Comércio) e, consequentemente, impossibilitou a intervenção do órgão em disputas comerciais. Pecequilo diz que os cortes no financiamento são “uma mudança de tática” para “pressionar as Nações Unidas e reformatar o multilateralismo de uma forma que respeite mais, segundo a visão do Trump, os interesses norte-americanos”.
António Guterres, secretário-geral da ONU, anunciou o plano UN80 para conter a crise monetária. A iniciativa traz um pacote de medidas para aumentar a eficiência administrativa da organização. “Os recursos estão diminuindo em todos os níveis –e isso já acontece há muito tempo”, afirmou. A proposta inclui cortes de pessoal, reestruturações e o fim de algumas atividades em agências menores.
Por ser uma organização internacional, a ONU depende do apoio financeiro dos países que a integram para se manter, o que impacta não só a sua atuação em conflitos, como também prejudica os seus programas humanitários. Um relatório publicado em julho mostrou que 11,6 milhões de refugiados corriam o risco de ficar sem assistência humanitária promovida pela Acnur.
No Sudão do Sul, que enfrenta risco de uma nova guerra civil, 75% dos espaços seguros destinados para meninas e mulheres foram fechados e 80.000 refugiadas ficaram sem cuidados médicos, apoio jurídico e psicossocial. A entrega de itens emergenciais foi reduzida em 60% a nível mundial.
Os 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentável), que fazem parte da Agenda 2030 da ONU, para combater a pobreza, a fome e promover a igualdade de gênero avançam em ritmo insuficiente. Segundo relatório de julho, 18% das metas registraram retrocesso e apenas 35% estão no caminho certo. “Tudo indica que até 2030 eles não serão cumpridos”, diz Costa.
A professora acredita que “ainda falta muito” para esta agenda ser implementada e que é necessário “vontade política dos países”. Kubik diz que “é muito difícil você cumprir com metas quando não há dinheiro”.
Esta reportagem foi produzida pela estagiária em jornalismo Gabriela Varão sob supervisão do editor João Vitor Castro.





