A equipe do ministro Alexandre de Moraes violou a LGPD (Lei Geral de Proteção de Dados) durante investigações relacionadas aos eventos de 8 de janeiro de 2023, segundo a organização norte-americana Civilization Works, que se define como defensora de valores liberais-democráticos. Eis a íntegra (PDF – 8 MB).
O relatório foi produzido por David Ágape e Eli Vieira e publicado na 2ª feira (4.ago) como uma reportagem no site Public. Segundo o relato dos jornalistas, o gabinete de Moraes acessou irregularmente dados biométricos e informações de redes sociais para investigar participantes da invasão dos prédios dos Três Poderes.
Além se relatar inquéritos criminais contra bolsonaristas no STF (Supremo Tribunal Federal), Moraes foi presidente do TSE (Tribunal Superior Eleitoral) de agosto de 2022 a maio de 2024. As irregularidades citadas no relatório teriam ocorrido na troca de informações entre os 2 gabinetes. Os acessos indevidos, segundo os jornalistas, teriam sido feitos pela equipe do TSE.
O Public é o site de Michael Shellenberger, autor do Twitter Files Brazil –um compilado de e-mails trocados por funcionários do Twitter (atual X) a respeito de decisões judiciais brasileiras que envolviam a rede social.
O relatório apresenta conversas que seriam do ex-assessor de Moraes no TSE Eduardo Tagliaferro com outros juízes e auxiliares do ministro, incluindo sua chefe de gabinete no STF, Cristina Kusuhara. As mensagens sugerem que funcionários do TSE teriam conduzido investigações não oficiais sobre pessoas detidas nos eventos de janeiro de 2023.
O texto afirma que a AEED (Assessoria Especial para o Combate à Desinformação) do TSE teria funcionado como estrutura paralela de investigação criminal sem base legal. Segundo os autores, a equipe recebeu acesso ao GestBio, banco de dados biométricos do tribunal eleitoral que armazena informações de brasileiros. Esse sistema, que contém impressões digitais, fotografias faciais e assinaturas coletadas no cadastro eleitoral, teria sido utilizado para identificar os envolvidos no 8 de Janeiro a partir de imagens.
Após associar nomes a rostos, a equipe teria pesquisado nas redes sociais por publicações que pudessem ser classificadas como “antidemocráticas”. Algumas delas eram anteriores à invasão do Congresso, do Supremo e do Palácio do Planalto. Leia mais nesta reportagem.
Um dos autores da reportagem, David Ágape, disse ao Poder360 que, como o GestBio é um cadastro eleitoral, ele não pode ser utilizado em uma investigação. “Precisaria de uma solicitação formal correta”, disse.
O advogado Richard Campanari, consultor jurídico especializado em direito eleitoral e civil, membro da Abradep (Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político) e consultado para a produção do relatório, compartilha da mesma avaliação. De acordo com ele, o processo legal formal para utilizar dados biométricos em processos penais ou investigações criminais envolveria:
“O GestBio não foi criado e nem autorizado a ser ferramenta de investigação ou persecução penal. Seu uso é restrito às finalidades eleitorais e de identificação civil previstas em lei”, afirmou ao Poder360. “O próprio TSE estabelece que o acesso a dados biométricos está protegido pelo sigilo constitucional (CF, art. 5º, X e XII) e pela Lei Geral de Proteção de Dados”, declarou.
Já Bruno Andrade, também membro da Abradep, discorda do colega. Na sua perspectiva, a utilização dos dados pode ser justificada pelo item d do artigo 4 da LGPD. O texto determina que a lei não se aplica em casos de “atividades de investigação e repressão de infrações penais”.
Andrade declarou que, “em um 1º momento, poderia haver essa utilização porque a LGPD não se aplica ao acesso que o relator tem no Supremo para instruir o processo criminal”. Sobre a comunicação das atividades por mensagens não formais entre as equipes de Moraes do TSE e do STF, o advogado avalia que são equipes diferentes com um mesmo chefe. “Talvez a forma de formalizar isso no processo não tenha sido muito ortodoxa, mas não existe ilegalidade nessa comunicação”.
Em setembro de 2023, o ministro Dias Toffoli anulou as provas que fundamentaram a Operação Lava Jato porque “foram obtidas em razão da contaminação do material que tramitou perante o juízo da 13ª Vara Federal de Curitiba, e por isso não podem ser utilizadas”.
A revelação de mensagens entre o então juiz Sergio Moro –hoje senador pelo União Brasil do Paraná– e procuradores, como o chefe da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, impulsionaram os questionamentos à operação. A série de reportagens liderada pelo site The Intercept Brasil ficou conhecida como Vaza Jato.
Já as revelações das conversas entre os assessores de Moraes do TSE e do STF começaram a vir à tona em agosto de 2024 a partir de reportagens publicadas pelo jornal Folha de S.Paulo.
Para o advogado Richard Campanari, há espaço para a anulação dos inquéritos sob relatoria de Moraes. “Sendo o material divulgado real, traz ainda uma série de outras consequências que torna até mesmo o acesso dos servidores questionável sob o ponto de vista ético e legal”.
Campanari cita problemas de parcialidade judicial, ética, legalidade e andamento de processo. “A meu ver, o que se evidencia agora é algo substancialmente mais grave: um ambiente institucional que opera pela lógica do silenciamento, do controle e do fortalecimento de estruturas de poder com viés autoritário. Por essa razão, os fatos divulgados pelo Civilization Works superam, em gravidade e alcance, os episódios anteriores”, afirmou. “Esse vazamento, na minha opinião, é o atestado de óbito do Estado de Direito no país”
O Poder360 entrou em contato com o TSE, o STF e o gabinete do ministro Alexandre de Moraes para perguntar se gostariam de se manifestar, mas não obteve nenhuma resposta até a publicação desta reportagem. O texto será atualizado caso uma manifestação seja enviada a este jornal digital.