• Quarta-feira, 22 de outubro de 2025

“Brasil não tem soberania digital”, diz professor do STM

Para Alexandre Peres Teixeira, dependência tecnológica deixa país vulnerável, e Direito não acompanha a guerra cibernética.

O avanço das tecnologias autônomas e da inteligência artificial em sistemas militares está transformando a natureza da guerra e do poder. Para o professor doutor Alexandre Peres Teixeira, coordenador da pós-graduação da Escola de Magistratura do Superior Tribunal Militar (STM) e editor-chefe da Revista de Doutrina e Jurisprudência do tribunal, o Brasil vive uma “dependência digital colonial” e ainda não possui soberania tecnológica.

A entrevista foi concedida ao Poder360 durante o III Simpósio de Defesa e Segurança Internacional, promovido pela Marinha do Brasil em parceria com o King’s College de Londres (KCL), no Rio de Janeiro.

Teixeira discutiu os dilemas éticos da guerra automatizada, o vácuo jurídico no ciberespaço e os riscos da dependência tecnológica no campo da defesa.

Poder360 — Muitos especialistas defendem que o “controle humano significativo” é indispensável em qualquer sistema de armas autônomas. Em um cenário de decisões militares tomadas em milissegundos, é realmente possível garantir esse controle, ou estamos, na prática, terceirizando o poder de matar a algoritmos?

Alexandre Peres Teixeira — O controle humano, na prática, é uma utopia no campo de batalha. Quando o comandante decide empregar uma arma autônoma, ele sabe que estará fora do processo de decisão do tiro. A máquina é feita para adquirir e atacar o alvo automaticamente, com base em heurísticas e dados programados. O ser humano decide apenas se liga ou não o sistema. A partir daí, a decisão é da máquina. O direito tenta tutelar isso, mas é impossível no calor do combate. A responsabilidade vai recair sobre quem autoriza o uso.

O Brasil tem se posicionado a favor de um tratado internacional que limite o uso de armas autônomas, mas, internamente, o PL da Inteligência Artificial (2338/23) abre exceções para fins de defesa nacional. Essa brecha coloca o país na contramão dos debates de direitos humanos?

Não necessariamente. Essa brecha coloca o Brasil em uma posição confortável. Há uma corrida global pela inteligência artificial, e as jurisdições nacionais evitam engessar a inovação. Mas o país vai precisar decidir: quer integrar o clube dos que desenvolvem armas autônomas ou vai usar a IA apenas em áreas civis. Nenhum Estado que se preze em defesa quer ficar fora desse debate. A verdade é que o futuro já chegou. Computação e criptografia pós-quântica são o presente, e  o Brasil está atrasado.

Quando uma arma autônoma comete um erro, quem deve responder legalmente: o programador, o comandante ou o Estado?

Hoje, a doutrina internacional caminha para uma responsabilidade solidária. O comandante é o primeiro responsável — ele deve saber o que está empregando, segundo o princípio do should know do Direito Internacional Humanitário. Mas, com os sistemas autônomos, o entendimento se amplia: todos na cadeia — desde quem treina, programa e carrega o algoritmo — podem ser corresponsáveis. Isso é novo. Nunca antes um fabricante foi responsabilizado por uma falha em combate. Agora, poderá ser.

Há diversos relatos de sistemas de reconhecimento facial que apresentaram vieses raciais. Até que ponto o uso de IA em segurança pública ou militar ameaça o princípio da dignidade humana?

O risco é real. Há empresas que treinaram algoritmos com bancos de dados enviesados, e o resultado foi a identificação incorreta e discriminatória de pessoas negras. Isso não é sempre intencional — é reflexo do racismo estrutural presente em quem programa o sistema. O perigo é tratar pessoas como “dados” e não como cidadãos. É um desafio ético e jurídico grave.

O Direito Internacional consegue acompanhar a chamada “guerra cognitiva”,  feita com deepfakes, desinformação e ataques cibernéticos?

Ainda não. Não há consenso global. Um grupo de especialistas da ONU tenta avançar nisso desde 2003, mas quando o tema toca interesses do P5, tudo para. O ciberespaço é uma zona cinzenta. Os Estados não querem criar normas sobre algo que eles próprios usam como ferramenta estratégica. É espionagem, sabotagem, manipulação — e ninguém quer abrir mão disso.

O senhor afirma que o Brasil não tem soberania digital. O que isso significa na prática?

Teixeira — Significa dependência total. Nenhum país fora do P5 tem soberania digital. As grandes potências controlam os chips, os sistemas e as cadeias produtivas. Se a China quiser hoje, fecha Taiwan e paralisa toda a indústria de chips da NVIDIA e da Microsoft. Se até os Estados Unidos dependem disso, imagine o Brasil, que não tem produção, tecnologia nem investimento. Soberania digital, hoje, é uma ilusão. E enquanto não entendermos que defesa e poder cibernético são parte da segurança nacional, continuaremos presos a esse colonialismo tecnológico.

A repórter Thayz Guimarães viajou ao Rio de Janeiro a convite da organização do 3º Simpósio de Defesa e Segurança Internacional

Por: Poder360

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