Professora do Departamento de Ciência Política da Universidade de São Paulo Lorena Barberia Foto: Wanessa Soares/Divulgação
A partir de modelos estatísticos, alimentados por dados demográficos, como a taxa de natalidade e o excesso de mortalidade ─ mortes acima do esperado ─ em 2020 e 2021, a pesquisa chegou a algumas estimativas:- Cerca de 1,3 milhão de crianças ou adolescentes, de 0 a 17 anos, perderam um ou ambos os pais, ou algum cuidador com quem elas viviam, por razões diversas;
- Dessas, 284 mil se tornaram órfãos ou perderam esse cuidador por causa da covid-19;
- Com relação apenas às mortes por covid-19, 149 mil crianças e adolescentes se tornaram órfãos e 135 mil perderam outro familiar cuidador;
- 70,5% dos órfãos perderam o pai; 29,4%, a mãe; e 160 crianças e adolescentes foram vítimas de orfandade dupla;
- 2,8 crianças ou adolescentes a cada 1 mil perderam um ou ambos os pais, ou algum familiar cuidador por covid-19;
- Entre estados, as maiores taxas de orfandade são as do Mato Grosso (4,4), Rondônia (4,3) e Mato Grosso do Sul (3,8), enquanto as menores são do Rio Grande do Norte (2,0), Santa Catarina (1,6) e Pará (1,4).
Órfãos reais
Em 2021, Ana Lúcia Lopes, hoje com 50 anos, perdeu o companheiro, o fotógrafo Cláudio da Silva, o que fez com que seu filho, Bento, que tinha 4 anos, ficasse órfão de pai. Ela lembra que esses números dizem respeito a crianças e adolescentes reais, que sofreram e continuam sofrendo com as mortes de seus entes queridos.Ana Lucia, Claudio e Bento Foto: Ana Lucia/Arquivo Pessoal
Sem nenhum fator de risco para a doença, ele tinha 45 anos e foi infectado durante uma viagem a trabalho. Com sintomas respiratórios, foi internado em uma quinta-feira, entubado na sexta e não resistiu após uma parada cardíaca, na segunda-feira seguinte. Nem pode rever o filho, após os dois meses de trabalho fora de casa."Apesar de tudo, no começo, ele parecia bem. Um tempo depois, quando ele foi mudar de classe na escola, ele começou a chorar bastante, porque não queria perder a professora. Aí, eu perguntei o que ele estava sentindo, e ele disse: ‘Ah, mãe, acho que eu queria o meu pai’. Foi quando ele começou o atendimento psicológico". Cláudio recolhia a contribuição previdenciária referente ao seu trabalho como microempreendedor individual, o que garantiu a Bento a pensão por morte e evitou que a família passasse por problemas financeiros. De acordo com outra autora do estudo, a promotora de justiça da cidade de Campinas (SP) Andréa Santos Souza, os problemas financeiros são os mais frequentes em situações de orfandade.“Eu contei para o Bento logo que aconteceu. A gente tinha um cachorrinho que morreu um pouco antes. Aí, eu falei para ele que o cachorrinho precisava de alguém lá no céu para cuidar dele e que o papai tinha ido fazer isso. Às vezes ele me via chorando e falava: "Mãe, você tá chorando por causa do meu pai?".
Violações de direitos
Durante a pandemia de covid-19, o trabalho de Andrea Santos Souza, que atua na área de Infância e Juventude na cidade de Campinas (SP), estava bastante focado na proteção das crianças e adolescentes afetados pelo fechamento das escolas, pela miséria pandêmica, ou pela crescente violência familiar. Até que ela percebeu um aumento nos pedidos de guarda, feitos por tios, avós e outros parentes. “Essas crianças estavam ficando órfãs sem uma representação legal. Pedi aos cartórios que me mandassem todas as certidões de óbito das pessoas que morreram por Covid e que deixaram herdeiros menores. Num primeiro momento, eles disseram que não conseguiam fazer esse recorte, então, eles me mandaram todas as certidões de quem morreu naquele ano de 2020. Foram mais de 3 mil, e foi um trabalho muito triste. Eu, uma estagiária e uma funcionária ficamos olhando certidão por certidão, separando todos os órfãos. Numa primeira leva, nós localizamos quase 500 crianças”, lembra Andrea. A partir daí, o trabalho duplicou: as certidões continuavam chegando, e, ao mesmo tempo, era preciso localizar todas essas crianças, encaminhá-las para programas de assistência, checar se já constavam no Cadastro Único no Governo Federal e se as famílias já recebiam o Bolsa Família ou o Auxílio Emergencial. Era preciso ainda verificar se elas não estavam sendo vítimas de outras violações, além de terem perdido suas mães e pais.Além dessas situações mais drásticas, Andréa enfatiza que toda orfandade aumenta a vulnerabilidade, especialmente nos casos minoritários de crianças que perderam tanto a mãe quanto o pai, ou daquelas que já eram criadas por mães solo, quantidade bastante frequente. Os profissionais de saúde que morreram e deixaram filhos eram numerosos, mas, como a pandemia escancarou desigualdades sociais, a maioria dos órfãos era de filhos de trabalhadores de limpeza, alimentação, transporte ou informais, que não puderam parar e se isolar em casa. Diante de exemplos tão trágicos, a promotora buscava entender melhor a dimensão da orfandade causada pela covid-19 no Brasil, quando as primeiras estimativas globais sobre a tragédia foram lançadas por pesquisadores do Imperial College, de Londres, na Inglaterra, em julho de 2021. Andréa entrou em contato com os pesquisadores, contou sobre a sua experiência localizando os órfãos de Campinas e, a partir daí, passou a colaborar com o grupo de estudos, que é o mesmo responsável pelas novas estimativas.“A primeira delas é a separação de irmãos, né? As famílias numerosas separam os irmãos. Quanto aos bebezinhos muito pequenos, tem o problema de adoções ilegais. As meninas tinham situações de exploração de todas as formas, trabalho doméstico forçado, casamento infantil, abuso sexual… Em muitos meninos, a gente via o direcionamento para o tráfico ilícito de entorpecente ou exploração do trabalho infantil…”





