A inclusão de testes de capacidade olfativa nos sistemas de saúde poderia contribuir para o diagnóstico precoce de doenças degenerativas e aliviar os custos de tratamento para as contas públicas. A tese é do otorrinolaringologista e professor universitário Márcio Nakanishi.
Em entrevista ao Poder360, o especialista afirma que o olfato, combinado a outros fatores, é capaz de ser um grande biomarcador para o diagnóstico precoce da demência. “Ele pode predizer o risco de uma pessoa saudável com antecedência de 5 a 10 anos”, disse.
Uma das soluções propostas pelo especialista é a massificação de testes modernos para ampliar a detecção da perda olfativa e antecipar diagnósticos de demência no sistema de saúde brasileiro.
O HUB-UnB (Hospital Universitário de Brasília), segundo o otorrino, é o primeiro hospital público do país a implementar o uso de um medidor digitalizado: o DSD (Dispositivo de Fragrância Digital).
Nakanishi auxiliou na criação do dispositivo. Em 2022, um dos estudos que liderou levou ao desenvolvimento do tablet portátil que é capaz de medir o olfato do paciente. O produto foi desenvolvido pela startup Noar com o objetivo de mensurar eventuais perdas causadas pelo vírus da Covid-19.
Assista à entrevista completa (36min3s):
https://www.youtube.com/watch?v=yYD5Z2ednng
Para medir sua capacidade olfativa pelo DSD, o paciente passa por 40 perguntas de múltipla escolha. Depois de sentir o cheiro emitido pelo dispositivo, ele responde no próprio aparelho ou no smartphone de qual aroma se trata. O processo dura cerca de 12 minutos. O DSD rende até 100 testes por refil.
Desde 2023, quando foi lançado no mercado comercial, o uso do dispositivo evoluiu. Agora, o produto é ligado a um banco de dados que registra em tempo real os resultados de todos os testes realizados.
Segundo Nakanishi, o procedimento, unido ao alcance do SUS (Sistema Único de Saúde) poderia tornar o sistema de saúde mais pragmático. “O SUS é amplo, mas ele carece de duas coisas: qualidade e eficiência. O DSD consegue trazer qualidade na atenção primária, porque ele é barato do ponto de vista do que ele entrega”.
Para o especialista, o panorama de envelhecimento populacional no Brasil exige políticas públicas mais assertivas. “Temos duas décadas para nos preparar”, declarou.
A relação entre a perda olfativa e o diagnóstico precoce de demência tem uma explicação anatômica.
Diferentemente dos outros sentidos, o olfato não passa pelo tálamo –uma espécie de central que organiza e distribui as informações no cérebro. O cheiro vai direto ao sistema límbico, conjunto de estruturas cerebrais que regulam a emoção, a memória e o comportamento. “Esses são os fatores cruciais afetados pela demência”, diz Nakanishi.
O otorrino lembra que a demência é uma síndrome caracterizada pelo declínio da função cognitiva. Habilidades como memória, raciocínio e planejamento são prejudicadas de forma irreversível. Até o momento, não existem maneiras de recuperar as células cerebrais lesionadas por doenças degenerativas.
Segundo Nakanishi, as proteínas que dão origem ao Alzheimer se depositam na área do córtex olfativo. Por isso, o comprometimento do olfato é perceptível antes mesmo do paciente desenvolver a demência.
Um estudo publicado pela revista acadêmica JAMA (The Journal of the American Medical Association) em abril de 2025 indica que há uma correlação entre a perda olfativa e mortalidade em idosos. Eis o link de acesso ao estudo, em inglês.
A pesquisa faz parte de um censo longitudinal que monitorou 2.524 residentes de uma ilha na Suécia entre 2001 e 2013. Todos os participantes tinham entre 60 e 99 anos durante a primeira coleta de dados.
Participantes com menos de 78 anos foram consultados a cada 6 anos. Pessoas com mais de 78 anos foram acionadas a cada 3 anos.
Nos check-ups, os pesquisadores mediram a capacidade olfativa dos idosos utilizando o teste chamado “Sniffin’ Sticks”. Os sujeitos recebiam 16 canetas olfativas de odores diferentes e deveriam identificar livremente o cheiro de cada bastão. Se não conseguissem, tinham que escolher uma entre 4 opções apresentadas por escrito.
Os resultados indicaram que uma resposta incorreta no teste de identificação de odores correspondia a um aumento de 6% no risco de morte nos próximos 6 anos e 5% em 12 anos. A proporção vale para todas as causas de morte contabilizadas no estudo, incluindo doenças degenerativas, câncer, óbitos cardiovasculares e respiratórios.
Quando analisaram os casos de pessoas que morreram apenas por doenças neurodegenerativas, os cientistas concluíram que uma resposta errada era equivalente a um risco de mortalidade de 28% nos 6 anos seguintes e 19% nos próximos 12 anos.
O Ministério da Saúde informou ao Poder360 que o número de pessoas convivendo com demência no Brasil em 2019 era de 1,8 milhão.
Segundo o Ministério, o número de casos mais do que triplicará até 2050. A projeção é de 5,7 milhões de diagnósticos.
Para chegar aos valores, o Ministério baseou-se nas estimativas do Estudo Carga Global de Doença, ou GBD (Global Burden of Disease). Os números estão presentes no Relatório Nacional sobre a Demência, divulgado pelo Ministério da Saúde em setembro de 2024. Leia a íntegra (PDF – 5 MB).
Segundo um estudo realizado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e publicado na revista The Lancet Global Health em outubro do ano passado, 54% dos casos de demência na América Latina poderiam ter sido evitados. Eis a íntegra da pesquisa, em inglês (PDF – 704 kB).
A pesquisa considera 12 fatores de risco para a população do continente sul-americano. São eles:
Em agosto de 2024, a comissão de demência da revista The Lancet acrescentou 2 outros fatores modificáveis para a população geral: colesterol alto e perda de visão não corrigida. Eis o link para assinantes.