Para o promotor, o relatório vem em excelente hora. “Aponta um caminho civilizatório para que a região da Cracolândia receba tratamento objetivo e que as coisas caminhem pelo lado correto da situação”, concluiu.“Se você pratica a violência reiterada e abre uma porta, as pessoas entram por essa porta. E qual porta foi aberta? A internação em hospitais psiquiátricos ou em comunidades terapêuticas.” Arthur Filho relatou que as internações têm, em média, de 15 a 20 dias, o que não tem apresentado efetividade no tratamento contra o vício de crack ou cocaína, segundo sua avaliação.
Racismo
A análise dos dados coletados ao longo do GTI mostra que o racismo estrutural é algo muito prevalecente para a compreensão dos problemas naquele território. “A grande maioria das pessoas são negras e há uma historicidade de preconceitos raciais que elas viveram tanto no decorrer da vida, quanto na experiência com a cidade e com o próprio fluxo”, disse Amanda Amparo, que também é antropóloga e pesquisadora do território da Cracolândia. Uma das recomendações do relatório aponta a necessidade de “reconhecer institucionalmente que o racismo estrutural é fator determinante na conformação histórica da cena de uso da Cracolândia, e incorporá-lo como eixo transversal na formulação, execução e monitoramento de todas as políticas públicas voltadas à região, em especial nas áreas de saúde, assistência, moradia, segurança e justiça.” Amanda criticou o resultado das ações da prefeitura e do estado, que levaram à dispersão da cena de uso, com denúncias de violência, remoções e internações forçadas, além de outras violações de direitos. “Eles conseguiram espalhar as pessoas do fluxo, mas onde estão essas pessoas? Em quais condições? Quais outros fluxos estão acontecendo nesse momento? De que maneira esses fluxos estão impactando a cidade?”, questionou. “É importante fazer esse levantamento para entender que temos hoje um cenário muito mais caótico, complexo e depreciador da proposta de uma cidade que possa acolher e reintegrar as pessoas que, por inúmeras razões das próprias políticas, estão em condições de maior vulnerabilidade. O relatório vem exatamente para dar uma resposta coletiva e propositiva [sobre a Cracolândia], baseada em uma pesquisa”, destacou a antropóloga. O promotor Arthur Filho ressaltou que a dispersão do fluxo não significa o fim da Cracolândia e lamentou a falta de estrutura básica para aquelas pessoas, como banheiros e acesso a água potável. “O estado e o governo municipal falam novamente do fim da Cracolândia, quando o que aconteceu foi um espalhamento pela cidade. É uma situação muito grave, pior ainda porque [estruturas de apoio] que havia na região central, como já teve a tenda, onde as pessoas podiam sentar, como tem ainda o Teatro de Contêiner Mungunzá, isso está sendo fechado”, acrescentou o promotor.Política transversal
O relatório faz apontamentos não apenas no que diz respeito à condição do uso da substância psicoativa, mas à situação clínica e geral das pessoas, além de indicar a necessidade de se desenvolver uma política transversal. A discussão da moradia, por exemplo, é fundamental, segundo Amanda Amparo. “As pessoas não vão conseguir se cuidar ou desenvolver um tratamento médico sem habitação”, disse ela.Para Amanda, o ideal seria que a prefeitura e o estado tomassem esse documento como uma ferramenta e pudessem desenvolver uma política de maneira transversal, pensando em todas as recomendações. Ela pondera que, embora o Programa Redenção, da prefeitura, tenha a perspectiva da transversalidade, não apresenta um bom resultado. Isso porque, na área da saúde, por exemplo, trabalha na lógica de internações e das comunidades terapêuticas. O relatório recomenda uma perspectiva voltada para redução de danos, o que, na opinião da pesquisadora, leva a melhores resultados. “Ainda que a pessoa não pare de fazer uso da substância psicoativa de maneira sistemática, ela consegue, de algum modo, que aquele uso não seja prejudicial a ponto de ela não conseguir se reintegrar e se reorganizar socialmente”, explicou Amanda. Relacionadas“Quando a gente olha para uma pessoa negra que se encontra numa condição de exclusão de inúmeros direitos, como baixo índice de escolaridade, não sustentabilidade de alimentação e outros problemas, isso aponta que não se trata de um problema singular da pessoa, mas de problemas estruturais do país que incidem na vida dessa pessoa. O uso problemático da substância psicoativa passa a ser uma saída, mas é apenas um elemento [diante dessas condições]”, acrescentou a pesquisadora.


